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sexta-feira, 8 de março de 2019

Narú: o tempo das palavras


Por Daniel de Lima *

Quando fui convidado por Narú, meu colega de classe da escola, fiquei surpreso. Ele sempre chama pra sua casa os seus amigos mas eu não me considerava um. Considerava-me apenas aquele colega que serve como step quando nada tem pra fazer. Pra mim o meu nome era pra ser lembrado em momentos de tédio dele. O simples fato de eu sempre ver ele rodeado de pessoas com a sua popularidade e também por sempre observar ele ser consultado nos assuntos de grande relevância já me mostrava a importância do seu convite. Eu queria impressionar. 

Eu não levava tanto em consideração as atitudes frias de Narú, porque eu acreditava que na verdade ele só pensava no presente. Não tinha por conta essas questões românticas de amizade. Amigos pra toda uma vida, essas coisas... ele queria era matar o tempo. Impaciente, a demora  deixava ele sempre muito angustiado e na espera que ele também colocava em prática todos os seus desajeitamentos teatrais. Com seus trejeitos, ele falava meloso mas também sempre mostrava braveza no franzir das sobrancelhas. A carranca só se desfazia quando tudo se restabelecia à vista dele. Por essas que aceitei o convite sem querer saber os pormenores. Eu disse apenas um simples “sim, eu vou.”

Agora imaginem só, naquele dia eu quis mesmo impressionar. Mamãe disse que eu exagerara no perfume e que nem pensar iria deixar um garoto de nove anos usar suspensório pra ir na casa do amigo da escola. Com meu tênis novo, fui também com a melhor camisa, melhor calça e muito apetite.


Quando cheguei ao encontro, o que me fez estranhar ao entrar na casa de Narú, era a falta de garotas que tanto o rodeavam no colégio. Quem encontrei por lá, eram garotos da sexta série que eu tanto admirava por suas roupas, atitudes e passeios de mãos dadas com as meninas lindas da escola. Eram essas meninas que faziam eu reservar um bom tempo em concentração total na frente do espelho em caso de algumas delas me chamassem pra conversar.

Narú apareceu na porta pra me receber, mas ele me deixou pasmado com uma pergunta: “quantas palavras você decorou?”

Fiquei sem graça e sem entender nada, apenas afirmei com a cabeça e fui entrando e cumprimentando a todos. Eramos em seis e todos bem vestidos, cabelos bem penteados e todos tinham um telefone celular em mãos.

Insisti em procurar as meninas. Sentado no sofá eu olhava para todos os lados. Talvez estivessem no andar de cima da casa. Ou no banheiro já que sempre que uma vai as outras vão atrás. E a música?, e o falar alto?, e a auto confiança exarcebada dos garotos diante das meninas sempre querendo mostrar um certo tipo de habilidade? Nada! Tudo era de uma tranquilidade búdica. Tudo bem organizado feito seita. Ritualisticamente eles mexiam nos seus celulares e iam preparando algo que seria mostrado em breve.

Foi-nos servido refrigerante, salgados e, quando dei por mim, ouvia sem parar palavras que eu nunca havia escutado em toda a minha vida — Anacrônico, Ululante, Eufemismo, seu Galhofeiro, etc. Achei que eles estavam falando de trás para frente. Mas não. O que ocorria era um campeonato de palavras. A regra básica se dava em declarar determinada palavra e seu significado. E tudo decorado. Os celulares serviam pra conferir as palavras e claro, quem era posto à prova deveria estar com o celular com a tela virada pra baixo. Todos tinham também um dicionário no colo mas era pouco usado. Davam preferência ao celular. Em meio a frases, anotações e verborragia, eu me senti asfixiado. A gota d’água foi quando Narú pediu pausa para ir ao banheiro: “o sufoco fisiológico precisa ser aliviado.”

Comecei a suar frio e me senti um coelho sem cenoura em uma festa de coelhos. Preferi disfarçar e pular fora daquilo tudo. Disse que precisava ir e que tinha dentista marcado, mas na verdade eu tinha mesmo era dor de cabeça. Fui pra casa chateado e com uma com uma vontade que não passava — comprar um dicionário! Mas não tinha dicionário algum na minha casa. Pedi pra minha mãe, que pediu pro meu pai, que pediu pra um amigo do trabalho que lhe orientou a procurar num sebo. Disse ainda que lá tinha até dicionário feito por lexicógrafo, e quando meu pai me falou isso, achei que os Ovnis estavam finalmente em solo terrestre. Haviam tomado conta do juízo dele e dos meus amigos.

Como um verdadeiro Sherlock Holmes eu peguei o dicionário que meu pai me deu e comecei a investigar as palavras, e lá fui eu, viajando com a linguagem. De antônimo a sinônimo, verbetes, etimologias e expressões populares. Rimei rímel com incrível, inglês com chinês e descobri que antônimo de prolixo é breve e de desapego é amor. Aprendi com os homônimo que a pia de bacia pode piar e que a raiz de uma árvore pode ser quadrada e calcular. Assim, com esse pequeno instrumento de palavras que me transformou num venturoso, eu estava em absoluta felicidade, uma felicidade insuportável até. 


Passado um mês , o convite veio novamente. Meio que sem querer na fila da biblioteca da escola e quem convidou não foi nem Narú e sim o seu irmão mais velho que já tinha ganhado por duas vezes dos três eventos de campeonato de memorização de palavras. O maior prêmio talvez seria a aceitação e popularidade entre todos. Era o que eu achava já que não havia medalhas ou troféu. A vitória era registrada nas redes sociais.

Na casa de Naru, eu já estava mais a vontade. Ninguém comentou nada sobre eu já estar de celular e dicionário em mãos. Todos já me tratavam como um iniciado. E o tempo foi passando e passado todas as fases me vi na grande final. Era Naru e eu. Não queria perder a amizade e nem aquela simpatia do meu amigo que já estava me abrindo muitas portas mas eu não queria também deixar passar o meu amor pelas palavras que adquiri nos últimos dias. Na hora do “valendo” já mandei um “Anticonstitucionalissimamente”. Com vinte e nove letras era o maior de todos os advérbios. Mas Narú era inteligente. Percebeu que eu estava treinado e a sua cara simpática deu lugar pra carranca. Ele estava concentrado e me olhava nos olhos. Sem pestanejar replicou: “Piperidinoetoxicarbometoxibenzofenona”. Essa palavra ele havia decorado na bula do analgésico de seu pai que sempre deixava na gaveta da cozinha junto com outros remédios pra ser usado em casos de emergência.


Foi a final mais longa. Todos vibravam e a torcida não se dividia. A cada resposta era comemorado com gritos e vibração. As palavras se digladiavam e eram conferidas pelos demais e a alegria tomava conta. Éramos enamorados das palavras. Queríamos decorar todas os vocábulos do dicionário e imaginávamos palavras que talves nem estivessem nele.

Colocamos no campo de batalha as palavras Alvíssaras, Cuntatório, Vitupério, Vicissitude, Sumidade, Tergiversar, Recôndito, Desasnado e Loquaz. Às vezes tinha uma pausa de dez minutos. Bebiamos refrigerante ou água, íamos ao banheiro e na volta beliscávamos alguns salgado. Sentamos no sofá um de frente pro outro e com o dicionário fechado no colo e mãos no celular com a tela voltada pra baixo que era retomado os palavrões. Iam de Filaucioso a Empedernido, de Gracilar a Horripilo. Por não titubearem foi decidido que os números de letras de cada palavra serviria também para pontuar. Mas não adiantou muito. Vieram tantas e tantas outras como Juvenizante, Kafkaesco, Mendacioso, Nitidificar, Prognóstico e Putrafato... os ânimos começaram a baixar e o cansaço obrigou a todos decidirem por empate técnico. Naquela noite teve dois campeões. Narú e eu vencemos.  Bebemos mais refrigerante, conversamos coisas despropositais e até cantamos algumas músicas que tocava no rádio que foi ligado por Narú que queria muito comemorar. Todos fomos embora naquela noite exaustos mas com um dia memorável que iria nos acompanhar por toda as nossas vidas.

No dia seguinte, na escola, a turma toda me esperou. Narú se adiantou e conversou comigo antes de todos. Falamos amenidades. Nos reuniu com os garotos e as meninas também foram chegando e, com as mãos no meu ombro, se mostrou feliz e completo naquele instante. Falamos muito sobre o dia anterior. As palavras sempre retribuem o tempo que você lhe da. 
















* Daniel de Lima é Tecnólogo em Segurança Pública e Cronista.