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sexta-feira, 21 de junho de 2019

Uma infância sem criança: danos da invisibilidade


Por Erineide Souza de Oliveira*


E há que se cuidar do broto,
pra que a vida nos dê flor e fruto
Milton Nascimento

Pensar a infância num país onde 190 mil crianças entre 5 e 13 anos são usadas como mão de obra explorada[1] é pensar sobre o lugar que a infância ocupa nessa sociedade assentada nos ideais capitalistas.
Historicamente, as crianças não são olhadas de forma justa e digna. Na Idade Média, não era dispensado às crianças afeto e cuidados necessários ao seu desenvolvimento saudável, resultando em um sem número de mortes infantis e desproteção dessa faixa etária, como discorre Juliana Linhares:

A vida era vista de forma homogênea, não havia diferenciação entre os períodos da vida. Durante a idade média, crianças e adultos eram tratados como iguais socialmente, facilitando a exploração, e maus tratos (2016, p. 23).

Se refletirmos acerca do silenciamento histórico da infância e sobre o descrédito aplicado às crianças nos depararemos com o apagamento da infância que, no Brasil, apenas tomou lugar de direito com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990.
Claro que a lei, por si, não oferece garantias de proteção e protagonismo. Ainda hoje é possível constatar os problemas advindos de um histórico penoso que circunda o universo da infância e suas profundas marcas sociais. Como aponta Philippe Ariès:

A criança então, mal adquiria algum desembaraço fisico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje (1986, p. 3).

Não serem olhadas e protegidas pelo Estado e pelos responsáveis lança as crianças numa experiência de abandono, que possivelmente acarretará prejuízos em seu desenvolvimento.
Em diversas áreas a infância tem direitos violados, sendo que os adultos não estão sensíveis a olhar para essas questões de forma justa, considerando as peculiaridades das crianças. Diante de todas as desproteções sabidas encontra-se num bojo danoso a exploração sexual e o trabalho infantil de crianças e adolescentes.
Frente a esse cenário é possível inferir que há profundas influências do capitalismo em nossa vida prática, vez que resta evidente que todos os corpos devem estar aptos a produzir, não sendo consideradas suas condições físicas, ainda que seja trabalho oriundo de exploração, especialmente nas famílias atingidas pela desigualdade imposta pelas perversidades do sistema capitalista. Conforme dispõe Hogemann:

As políticas sociais brasileiras têm história recente. Com a feição de políticas públicas destinadas à garantia e promoção de direitos básicos negados pelo capitalismo à maioria pobre, esta prática tem configuração muito atual (2012, p. 3).

A exposição de crianças ao trabalho indevido e criminoso tem raízes fincadas na negação de direitos e na invisibilização das pessoas em processo de desenvolvimento, como se essa fase não fosse determinante para se transformar em adultos produtivos.
Explorar a mão de obra de corpos infantis expõe uma questão fundante: a desproteção da infância se desvela em nosso cotidiano como um facão que corta futuro. Os dados alarmantes de exploração deram origem a políticas públicas que objetivam ao combate desse mal que assola a infância. Contudo, as políticas ainda não se configuram suficientes para a efetividade dos objetivos.
No dia 12 do mês de junho destaca-se o dia mundial de combate ao trabalho infantil, em cujas veias residem infâncias roubadas. De acordo com as Convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho) nº 138  e nº 182:

A)   É considerado trabalho infantil o trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima de admissão ao emprego/trabalho estabelecida no país;
B)   Os trabalhos perigosos são considerados como piores formas de trabalho infantil e não devem ser realizados por crianças e adolescentes abaixo de 18 anos. Caracteriza-se como trabalho perigoso as atividades que por sua natureza, ou pelas condições em que se realizam, colocam em perigo o bem-estar físico, mental ou moral da criança. Essas atividades devem ser estabelecidas por cada país;
C)   Também são consideradas como piores formas de trabalho infantil a escravidão, o tráfico de pessoas, o trabalho forçado e a utilização de crianças e adolescentes em conflitos armados, exploração sexual e tráfico de drogas.
Segundo a OIT, o Brasil não cumpriu o compromisso da Convenção 182 de erradicar todas as piores formas de trabalho infantil até 2016. O compromisso foi revisto e a meta agora é de erradicar todas as formas da prática até 2025, conforme preveem os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.[2]
O combate à exposição das crianças ao trabalho passa também pela necessidade do Estado voltar a atenção para a inclusão universal das crianças em unidades escolares e se ocupar da oferta de educação de qualidade, e da ampliação das políticas de assistência social e saúde.
Perceber a infância inserida num mundo capitalista, cujas faces perversas não dão lugar digno e justo à infância, é pensar em o quão mergulhado estamos num sistema que não respeita nada além de seus objetivos danosos e explora pessoas de forma letal.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, dispõe em seu artigo 4º que "é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta propriedade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

Isso demanda de todos nós a responsabilidade acerca da proteção das crianças. É urgente que todos nós nos apliquemos nessa necessidade de garantir à infância um desenvolvimento saudável e digno, respeitando-se as suas necessidade específicas. 









* Erineide Souza de Oliveira é Assistente Social, Poeta e Feminista.

Referências bibliográficas:


LINHARES, J. M. História Social da Infância. 1ª ed. Sobral, 2016.
ARIES, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Guanabara, 1986.
RIZZINI, I. Et al. Criança não é Risco, é Oportunidade. EDUSU-Editora Universitária Santa Úrsula, 2000.
HOGEMANN, E. R. A infância Pobre, a Estigmatização Objetificada, a lei, a Filantropia e a Caridade como Enfrentamento de uma Realidade Dissimulada Histórica e Socialmente. Trabalho apresentado in: XXI Encontro Nacional CONPEDI/Universidade Federal de Uberlândia, 2012.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF.

Notas:


[1] Dados extraídos de www.ibge/pnad. PNAD Contínua 2016: Brasil tem, pelo menos, 998 mil crianças  trabalhando em desacordo com a legislação. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/18383-pnad-continua-2016-brasil-tem-pelo-menos-998-mil-criancas-trabalhando-em-desacordo-com-a-legislacao>  Acesso em: 20 maio/2019.
[2] Dados da Organização Internacional do Trabalho, disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-infantil/lang--pt/index.htm. Acesso em 20 de maio/2019.