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quarta-feira, 29 de maio de 2019

Síntese de um debate: novas perspectivas sobre a Cultura Popular Africana


Por José Edílson Teles *

Prólogo: apresentando as perspectivas de um problema

Esse breve ensaio procura situar o debate contemporâneo em torno do conceito de “cultura popular” em África, tomando como ponto de partida as contribuições de Jahannes Fabian (1978) e Ulf Hannerz (1987). Os exemplos etnográficos de Fabian situam-se no Zaire e os de Hannerz situam-se na Nigéria. Ambos problematizam o enquadramento analítico clássico dispensado ao colonialismo em África e propõem, cada um seu modo, novos modos de ler esse processo. O investimento etnográfico de ambos tem como objetivo demonstrar que as práticas urbanas, tais como os modos de sociabilidades, a música, o lazer, o esporte, a moda, etc., sejam vistas como expressões da cultura popular. Esses novos olhares sobre os fenômenos urbanos em África tem a vantagem de romper com os dualismos rígidos que insistem na distinção entre o “autêntico” e o “inautêntico”, o “puro” e o “impuro”.
A fim de levar a diante as contribuições das abordagens de Fabian e Hannerz, procuro articular dois artigos que tratam da expressão da cultura popular em diferentes contextos africanos: o primeiro é o caso da colonização portuguesa em Moçambique e sua relação com a popularização do futebol, tratado por Nuno Domingos em Desporto moderno e situações coloniais (2010); o segundo artigo, Nem todas as batalhas eram flores (2013), de Andrea Marzano, trata dos modos de sociabilidade e os conflitos sociais em Luanda, capital de Angola. Ambos os artigos nos permitem situar as novas leituras do processo de colonização e urbanização em África, tal como propõe Fabian, ou do processo de “criolização”, como prefere Hennerz. Vejamos, em síntese, o desdobramento desse debate.

Ato I: para não desentender um debate – novos olhares sobre a cultura popular africana

            A literatura antropológica contemporânea que trata dos fenômenos urbanos em contextos africanos apresenta um conjunto de desafios aos conceitos analíticos clássicos, sobretudo, quando se trata das implicações do colonialismo e da potencialidade de agencia dos grupos dominados. Essa literatura procura demonstrar, por meio de novas abordagens, a ineficácia dos conceitos binários rígidos, tais como “dominação” x “exploração”, para dar conta de uma série de fenômenos sociais em processos de mudanças. Além disso, como desafio, argumenta-se a necessidade de tratar dessas questões sem os riscos da essencialização ou exotização da alteridade cultural.
            Antes de avançarmos nos desafios analíticos dessa proposta, é preciso lembrar que as monografias clássicas sobre África situavam-se em outros contextos e planos analíticos. E.E. Evans-Pritchard, por exemplo, ao empreender a pesquisa encomendada pelo governo colonial sudanês sobre Os Nuer (2008 [1940]), toma-os como uma unidade tribal. Seu objetivo era descrever e analisar os modos de subsistência e as instituições políticas de um povo que vivia nas proximidades do rio Nilo, no sul do Sudão, e que haviam promovido uma série de insurgências contra o governo colonial anglo-egípcio. O fato de não haver, nos termos ocidentais, uma organização política como o Estado, faz com que Evans-Pritchard suponha tratar-se de uma sociedade sem “governo”, uma “anarquia ordenada”. Seu esforço era demonstrar que, apesar dessa aparente “anarquia”, a estrutura social nuer era organizada por meio de uma série de segmentos tribais, territoriais e de aldeias. Para descrever os mecanismos que permitiam a organização de um “princípio estrutural” nuer, Evans-Pritchard recorreu à noção de “sistema político”, reconhecendo os limites de tal terminologia.
O caso dos Nuer continua ilustrativo para essa questão. Beatriz Perrone-Moisés (2001) apresenta um quadro contemporâneo das relações deste povo com os Dinka, vizinhos com os quais travavam conflitos antigos, conforme a descrição de Evans-Pritchard. Entretanto, Perrone-Moisés coloca questões nas quais esses dois povos não são mais tratados como unidades tribais isoladas, tal como nas descrições de Evans-Pritchard, mas como parte de um novo contexto de independência do Sudão. Nesse sentido, a ideia de “tribo” como uma unidade de análise passa a não fazer sentido na descrição desse novo contexto social em África.
A fim de colocar a questão em outros termos, Jahannes Fabian (1978), Karin Barber (1987), Ulf Hannerz (1987) e Frederick Cooper (1987), propõem, para além dos conceitos binários rígidos mencionados, que se atente para as dinâmicas dos fenômenos urbanos. De modo geral, a fim de abandonar as análises de “unidades” isoladas, esses autores estão preocupados em propor uma reflexão sobre o fenômeno da “cultura popular”, investindo na produção do que poderíamos chamar de “antropologia do cotidiano”.
Apesar das ambiguidades em torno do conceito de “cultura popular”, essa ideia tem a vantagem de apreender um conjunto de relações não institucionalizadas ou pensadas nos termos de um poder colonial ou nacional. Conforme o argumento de Fabian, seu uso pode ser justificado pelas seguintes condições:

(a) sugere expressões culturais contemporâneas realizadas pelas massas em contraste com ambos os modernos cultura ‘tribal’ elitista e tradicional; (b) evoca condições históricas caracterizadas por comunicação em massa, produção em massa e participação em massa; (c) implica, em meu entendimento, um desafio às crenças aceitas na superioridade do ‘puro’ ou ‘alta’ cultura, mas também para a noção de folclore, uma categorização que temos suspeitado de ser igualmente elitista e ligado a certas condições na sociedade ocidental; d) significa, pelo menos potencialmente, processos que ocorrem por trás das bases estabelecidas dos poderes e interpretações aceitas e, assim, oferece uma melhor abordagem conceitual a descolonização da qual é, sem dúvida, um elemento importante” (1978, p. 315, tradução minha).

É importante notar que o conceito de “cultura popular”, tal como formulado por Fabian, procura dar conta de um “complexo de expressões de experiência de vida” (p. 315), entre os quais, a produção musical e as práticas desportivas que constituem formas de lazer das massas urbanas e elementos importantes para pensar o processo de descolonização. Seguindo as pistas que o conceito de cultura popular permite conduzir, Fabian propõe-se a comparar três mídias populares no Zaire: a) as temáticas da música popular, especialmente as que tratam das relações homem-mulher; b) as implicações da religião Jamaa na vida dos convertidos (e suas relações com a tradição local); c) as figuras das sereias (mamba muntu) das pinturas de artistas populares.
Cada uma dessas dimensões tem seus agentes e são produzidas em diferentes contextos: a sociabilidade nos bares por meio da música; no caso da religião, as implicações para a vida dos casais, cujas obrigações exigem o rompimento com a tradição; no caso da pintura, os estabelecimentos comerciais. Portanto, a proposta de tomar esses elementos como uma expressão da cultura popular permite a essa abordagem pensar o espaço das contradições, superando o dualismo entre o que é considerado “autêntico” e “inautêntico”. Cada um, a seu modo, expressam diferentes “experiências da vida”, como diria Fabian.
Na abordagem de Ulf Hannerz (1987) a questão da cultura popular ganha dimensões ainda mais amplas. Tomando como ponto de partida o contexto nigeriano, Hannerz problematiza conceitos teleológicos, tais como “aculturação” e “modernização”, que tendem a não perceber as múltiplas dimensões das relações de poder em disputa. Hannerz propõe uma teoria linguística da “criolização” para narrar um processo de mudanças linguísticas em um novo contexto. Como ele mesmo diz: “como eu mesmo vejo, culturas crioulas como línguas crioulas são aquelas que atraem de alguma forma em duas ou mais fontes históricas, muitas vezes originalmente muito diferentes(1987, p. 552, tradução minha). Nesse sentido, a questão da “apropriação” de elementos culturais externos não aparece na chave da “alienação”, mas numa relação “periferia-centro” (p. 556), sem que se presumam as oposições entre o “autêntico” x “inautêntico”. Em sua positividade, essas apropriações se transformam, se “criolizam” e ganham novos status.
Nos casos tratados por Fabian (no Zaire) e por Hannerz (na Nigéria) temos a emergência da cultura popular como um fenômeno eminentemente urbano, decorrente de um longo processo de colonização e mudanças locais. Entre esses fenômenos urbanos, as formas de sociabilidades e lazer, bem como as práticas desportivas, teriam a vantagem de apresentar outras facetas do colonialismo, para além da moldura tradicional. Nessa direção, Phyllis Martin (1997) – a partir de uma controvérsia em torno do futebol em Brazzaville, em 1936, na qual se discutiam a pertinência de uma lei que proibia uso de chuteiras por parte dos jogadores negros – apresenta as dificuldades poder colonial em lidar com regulação dos corpos. Assim, por essas “frestas” do poder, Martin sugere que o colonialismo seja visto como um modo de “percepção” que inculca em todos os envolvidos, dominados e dominantes, um modo viver.
Vejamos, a seguir, como dois casos – um sobre futebol e outro sobre lazer – nos permite compreender as dinâmicas da cultura popular urbana.

Ato II: articulando situações: práticas desportivas, sociabilidades e conflitos sociais

            Em Desporto moderno e situações coloniais (2010), Nuno Domingos trata de contextualizar o caso do futebol em Lourenço Marques, colônia portuguesa em Moçambique. Segundo Domingos, a história do desporto permitiria compreender as várias estruturas do poder colonial. Seu argumento é que as práticas de lazer revelariam não apenas as estruturas hegemônicas de poder, mas também as condições de existência do mundo dos dominados, permitindo salientar suas potencialidades enquanto universos de recriações e invenções.
Não bastaria, portanto, voltar-se para os aspectos institucionais do colonialismo, como a escola, o exército, as missões religiosas e as empresas capitalistas; seria preciso reconhecer os diferentes modos de agenciamento colocados em circulação pela dinâmica das práticas, a fim de obter novas perspectivas de uma “imagem do processo colonial”.
Em primeiro lugar, as práticas desportivas expressavam a estratificação social imposta pelo colonialismo. Trata-se, segundo Domingos, de um fenômeno que tem suas raízes no processo de urbanização. Esse sistema de dominação implicava numa divisão que distinguia os chamados “civilizados” e os “indígenas”, categoria composta por grande parte da população. De modo sutil, os “assimilados” – que mais tarde seriam reconhecidos como uma “elite crioula” – apareciam como uma terceira categorização para designar aqueles que provavam estarem em condições de viver de acordo com o estilo de vida europeu. Assim, inscrito na cultura popular e urbana, o desenvolvimento do desporto trouxe consigo não apenas novos estilos de vida para os diferentes grupos, como também expressava o racismo de modo intenso e visível.
Do ponto de vista institucional, o colonialismo português contava com modelos de associativismo que favoreceram o desenvolvimento das redes de associações e clubes, bem como o estabelecimento de competições organizadas. A partir daí, as práticas desportivas, especialmente o futebol, se revelavam como elementos cruciais do lazer das populações no espaço urbano. Phyllis Martin ainda nos lembra de que esse processo de urbanização em África introduz uma lógica da produção capitalista e lazer, baseada em uma noção de tempo totalmente nova para o contexto africano. Logo, a difusão de uma cultura urbana também expressava as contradições da estratificação social.
Se por um lado as práticas desportivas eram vistas pelas elites como um mecanismo da “civilização” da juventude africana, por outro, o universo de recriação e invenção por parte destes subvertiam essa lógica. A popularização do futebol nos subúrbios, como símbolo do moderno, desenvolveu-se paralelo às práticas tradicionais locais. Domingos menciona, por exemplo, o desenvolvimento de uma “indústria da feitiçaria”, cujas práticas produziam especialistas responsáveis por auxiliarem nos resultados dos jogos. A necessidade de vitória e o prestígio dos jogares originou uma especialização “futebolística” da prática do feiticeiro. Por fim, conclui Domingos, que o desposto constitui-se em um “espaço de oportunidades, de expressões conscientes ou inconscientes de lutas” (2010, p. 239) num contexto de dominação colonial violenta.   
Modos de sociabilidades e conflitos convivem nos variados espaços urbanos. O artigo de Andrea Marzano, Nem todas as batalhas eram flores (2013), corrobora essa questão. Seu objetivo é analisar o contexto dos conflitos sociais em Luanda entre os séculos XIX e as três primeiras décadas do século XX. Tomando como eixo as formas de sociabilidades no cotidiano, Marzano procura demonstrar as tensões entre diferentes grupos, intensificadas especialmente pela presença da colonização.
A fim de construir a situação dos grupos de conflito, Marzano propõe três categorias sociais: os “colonos”, considerados como situados no topo da hierarquia social, seriam identificados como portugueses recém-chegados e seus descendentes; os “angolenses” ou “filhos da terra” aparecem como uma autodesignação dos negros e mestiços que dominam alguns códigos culturais europeus e a língua. Assim como no caso de Lourenço Marques, tratado por Domingos, temos aqui também a presença de uma elite “crioula”. Por sua, o terceiro grupo seriam os “gentios”, categoria que até o século XIX designava os africanos que não dominavam os códigos culturais europeus. Mais tarde, a designação desse grupo como “indígena” teria se tornado predominante.
O ponto forte do artigo de Marzano é demonstrar que essas relações de tensões são construídas ao longo de séculos da presença da colonização. A cidade de Luanda representou um importante polo para o comércio de escravos, fato que intensificou a circulação de pessoas e a flagrante desigualdade entre os grupos supramencionados. Assim, os modos de lazer também manifestam as ambiguidades e conflitos sociais: as danças culturais híbridas, os hotéis como símbolos da relação com a metrópole, as bebidas e os jogos de azar, os festivais de flores na cidade, apontavam para diferentes níveis de distinção e hierarquização.
Marzano argumenta que as “formas de sociabilidade características do modo de vida europeu” representava uma “oportunidade para os colonos demarcarem suas diferenças em relação aos negros e mestiços nascidos em Angola” (2013, p. 22). Em suma, segundo Marzano, os espaços de lazer, especialmente o esporte, continuavam a manifestar tensões entre diferentes grupos, lembrando que “nem todas as batalhas eram flores” (p. 34).

Epílogo: os rendimentos do conceito de cultura popular   

            A síntese do debate que procurei reconstituir tinha como objetivo apontar os rendimentos analíticos do conceito de “cultura popular”. Essa abordagem tem a vantagem de contar com os exemplos etnográficos a seu favor e permite apresentar nuances do colonialismo que as análises macro e institucionais não dão conta de apreender.
            Pode-se ainda argumentar que tomar os fenômenos urbanos como diferentes expressões das “experiências de vida”, como diria Fabian, permite ainda superar as análises que supõem o status de pureza dos elementos culturais. Submetido a constante transformação, a cultura popular africana exige novos olhares ou novas perspectivas analíticas. Como vimos, apesar dos limites que se impõe a qualquer modelo analítico, a principal contribuição dessa antropologia do cotidiano é problematizar a essencialização ou a exotização da cultura africana. O caso do futebol e dos modos de lazer, certamente nos permitiram olhar pelas frestas do poder colonial e perceber outros aspectos da vida social, sem que nos decepcionássemos com as projeções ocidentais de uma “África profunda” ou de uma “África exótica”.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBER, Karin. “Popular arts in África”. In. African Studies Review, n. 30 (3), 1987.
COOPER, Frederick. “Who is the populista”. In. African Studies Review, n. 30 (3), 1987.
DOMINGOS, Nuno. “Desporto moderno e situações coloniais: o caso do futebol em Lourenço Marques”. In. MELO, Victor Andrade; BITTENCOURT, Marcelo; NASCIMENTO, Augusto (Orgs.). Mais do que um jogo: o esporte e o continente africano. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.
EVANS-PRITCHARD, E.E. Os Nuers: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo. Perspectiva, 2008.
FABIAN, Johannes. “Popular culture in Africa: findigns & conjectures”. In. Africa, n. 48 (4), 1978.
HANNERZ, Ulf. “The world in creolization”. In. Africa, n. 57 (4), 1987.
MARTIN, Phillys. Leisure and Society in Colonial Brazzaville. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
MARZANO, Andrea. “Nem todas as batalhas era flores: cotidiano, lazer e conflitos sociais em Luanda”. In. In. MELO, Victor Andrade; DOMINGOS, Nuno; BITTENCOURT, Marcelo; NASCIMENTO, Augusto (Orgs.). Esporte e lazer em África: novos olhares. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2013.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Conflitos recentes, estruturas persistentes: notícias do Sudão”. In. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, n. 2, v. 44, 2001.


* José Edílson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP). Este ensaio foi desenvolvido como proposta de trabalho final para disciplina “Cultura Popular Africana”, ministrado pelos professores Wilson Trajano Filho e Laura Moutinho, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (USP), no primeiro semestre de 2018. De modo especial, agradeço aos professores pelas contribuições.