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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Religião como ato sacrificial: uma leitura da sessão de impeachment da presidenta Dilma Rousseff

Por José Edilson Teles*


Resumo.

Esse breve ensaio pretende problematizar os incômodos que a linguagem religiosa produziu durante a sessão que votou pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff (PT) em abril de 2016. Essa sessão tornou evidente, entre outros elementos, as características da laicidade brasileira. Para tratar desse problema, parto da seguinte questão: por que o discurso religioso de alguns parlamentares favoráveis ao impeachment causou (certo) desconforto público? Minha hipótese consiste em demonstrar que a gramática religiosa acionada pelos parlamentares em seus votos pró-impeachment apresentam os elementos de uma religião como ato sacrificial, cuja função estabelece a vítima como canalizadora da crise coletiva. 


Palavras-chave: Impeachment, religião, laicidade, gramática religiosa, sacrifício.




As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, 2002, p. 41.  

Tal como mostra hoje, uma vez mais, o uso desenfreado dessa herança bíblica, nós ainda não dispomos de um conceito apropriado para a diferença semântica entre o moralmente incorreto e o profundamente mal. Não existe o demônio, mas o anjo caído segue seu curso calamitoso – seja nos bens invertidos da ação monstruosa, seja também no incontrolável ímpeto de vingança que o segue de perto.
HABERMAS, Jürgen. Fé e saber, 2012, p. 18.

Prólogo: por que a linguagem religiosa incomoda os modernos?

Em Fé e saber, Jürgen Habermas havia colocado o desafio de pensar o lugar da religião no mundo moderno após o acontecimento de 11 de setembro de 2001. Em linhas gerais, eis o problema: de que modo a “tensão entre a sociedade secular e a religião” desafia os modelos analíticos que tratam do processo de secularização e da emergência da esfera pública nas sociedades modernas? Segundo Habermas, ao menos duas explicações convergiram para o diagnóstico equivocado quanto à presença das religiões nas sociedades seculares: a primeira por enfatizar o otimismo do progresso da modernidade “desencantada” ao pressupor domesticação e substituição dos modos de vida religiosa por equivalentes racionais ou valores modernos; a segunda por enfatizar que os valores modernos são apropriações ilícitas dos valores religiosos e, portanto, herdeira dos motivos de sua ruína.
Segundo Habermas o equívoco de ambas as leituras consiste em considerar a secularização como a superação da religião pelas forças produtivas e da técnica advindas com o capitalismo. Nesse “jogo de soma zero”, como diz Habermas, “um só pode ganhar à custa do outro” (2013, p. 6). Nesse sentido, a religião é vista (no mínimo) como uma intrusa que insiste em estar fora do seu “devido” lugar, à esfera da vida privada. A fim de propor uma releitura do paradigma da secularização, Habermas argumenta que o conceito de sociedades “pós-seculares” tem como objetivo desenvolver uma nova perspectiva sobre as tensões entre as linguagens religiosas e as linguagens seculares. Portanto, podemos concluir que para Habermas “a história da modernização não coincidiu sempre com a história da secularização” (MONTERO, 2009, p. 206).
Segundo Habermas, o desafio das sociedades “pós-seculares” seria encontrar um modo de ajustar-se “à sobrevivência de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante” (2013, p. 6). Preocupado com a busca de consenso na esfera pública, espaço do agir comunicativo entre os diversos falantes (inclusive os religiosos), Habermas insiste na possibilidade da pluralidade de vozes que devem caracterizar o que chama de sociedade “pós-secular”. Se a linguagem religiosa parece causar desconforto numa sociedade que explica seu mundo nos termos de um saber técnico-científico, tal como o exemplo da engenharia genética, a provocação de Habermas é que essa linguagem mítica não deve ser de todo descartada, mas “traduzida”. Essa seria, segundo Habermas, a relação entre (religião) e saber (ciência e política).
O otimismo de Habermas em “traduzir” a linguagem mítico-religiosa nos termos das linguagens seculares não apenas reconhece as “funções sociais positivas” da religião (ZABATIERO, 2008, p. 148), mas também pressupõe que “as religiões podem ter contribuições cognitivas para a esfera política” (MONTERO, 2009, p. 207). Nesse sentido, o otimismo de Habermas sugere que a religião seja concebida como um tipo de conhecimento passível de tradução para os problemas públicos, especialmente quando se trata dos valores morais no mundo da vida.
Apesar de colocar em novos termos a leitura teleológica da secularização, o argumento de Habermas é marcado por uma teoria normativa da esfera pública, uma vez que sua preocupação esta voltada para a produção de consensos entre as múltiplas vozes que disputam os sentidos do mundo da vida. Contudo, meu propósito não é “traduzir” a linguagem religiosa nos termos habermasianos, mas problematizar o desconforto que essa linguagem produz no contexto político do mundo moderno. Por que a linguagem religiosa causa incômodo nesse contexto? Por que a religião é percebida como uma “visitante” indesejada e fora do lugar? Meu argumento é que esse incômodo está relacionado à herança do conceito de laicidade ou secularismo como oposição à ideia de religião. 
Pensando no contexto brasileiro, vejamos a configuração de uma específica gramática religiosa e o desconforto – ou constrangimento – que essa linguagem produz num lugar onde aparentemente – julga-se que – não deveria estar. Nesse ponto, concentro-me nos sentidos que as palavras comunicam, nas práticas que produzem. Para Mikhail Bakhtin, “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (2002, p. 36). A própria noção de “gramática religiosa”, tal como utilizo, indica um conjunto de regras que organizam a experiência da linguagem e as interações sociais. Tomemos como exemplo desse desconforto a cena do processo de impeachment contra a então presidenta da República, Dilma Rousseff (PT).

Sobre um domingo agonístico.

Domingo, 17 de abril de 2016, dia decisivo (que se estendeu por horas, desde as 14h à madrugada) para a admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff.[1] Após uma série de reviravoltas políticas e jurídicas (que se arrastava desde meados de 2015, segundo ano de seu governo), o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), declarou aberta a sessão com a seguinte frase: “está aberta a sessão. Sob proteção de Deus e em nome do povo brasileiro iniciamos nossos trabalhos” (itálico nosso). Apesar do pedido de “proteção divina”, do início ao fim, a sessão no parlamento foi tumultuada: ora se ouvia uníssonas vozes de “fora PT” por parte da oposição ao governo Dilma, ora se ouvia “não vai ter golpe” por parte dos que defendiam a presidenta. A sessão foi, de fato, fatídica nas duas acepções que esse termo pode adquirir: por um lado, selou o destino combinado entre agentes políticos e elites econômicas; por outro, abriu caminhos para a trágica ruptura do pacto democrático.
A sessão de votação do processo de impeachment tornou evidente a presença (incomoda) do discurso religioso, de modo que, para fins analíticos, exige-se uma releitura do conceito de religião, bem como do que entendemos por laicidade. Seguindo as pistas teóricas de Charles Hirschkind, minha leitura implica em não tomar esses dois conceitos como pares de oposição, mas como a articulação de “instituições, ideia e orientações afetivas que constituem uma dimensão importante do que chamamos de modernidade” (2017, p. 175).  
Emerson Giumbelli (2004, p. 48) argumenta que no caso da formação do Estado brasileiro, a própria construção da ideia de modernidade nasce imbricada com o religioso e não a parte dele. A recente onda dos evangélicos na política partidária, que passaram a concorrer os mais variados setores da vida social e a exigir do Estado os mesmos privilégios concedidos à Igreja Católica, recoloca o problema normativo de que a religião está “fora do lugar”; entretanto, na formação do Estado brasileiro o catolicismo sempre esteve presente, mas sua gramática religiosa não incomodava, tal como parece ser as estratégias de visibilidade e o discurso bélico-exclusivista de alguns setores evangélicos, especialmente os chamados pentecostais.
Em Os deuses do parlamento, Ronaldo de Almeida nos lembra que a frase proferida por Cunha na abertura da sessão, que põe em evidência as características do Estado laico brasileiro, não era somente um “ato de (sua) vontade” como um evangélico autodeclarado, mas também um “rito de abertura das sessões do Poder Legislativo, tanto da Câmara como do Senado Federal” (2017, p. 71). Se a frase de Cunha é um rito naturalizado na consolidação da laicidade do Estado brasileiro, o processo de votação impeachment colocaria o problema da relação entre religião e política em superfície. O desconforto produzido por essa linguagem religiosa torna evidente a ferida narcísica de um ideal de laicidade que havíamos naturalizado (Cf. CAROZZI, 1994; GIUMBELLI, 2002, 2004; MONTERO 2003, 2009, 2012).
Ronaldo de Almeida destaca o “léxico político” mobilizado no voto dos parlamentares pró- impeachment, tais como a noção de “Deus” cristão, a noção de “família tradicional” e a ideia de “nação”. Segundo Almeida essas três noções “operaram como elementos unificadores e transversais” de valores do “repertório político liberal moderno” (2017, p. 71). Nesse caso, não se trata de associar o discurso religioso ou o chamado “conservadorismo” à conta dos evangélicos, mas chamar atenção para o substrato comum, ou melhor, para os elementos que foram capazes de alcançar diversos grupos. Vejamos alguns desses elementos.

Gramática do sacrifício no parlamento.

O discurso do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), que fez a leitura do relatório após a abertura feita por Cunha, apresenta os elementos desse “substrato cultural” compartilhado por diversos grupos sociais ao introduzir uma citação de Chico Xavier. Após uma leitura de aproximadamente 20 minutos do relatório favorável à instauração do impeachment, Arantes termina nos seguintes termos:

Peço licença para agradecer a Deus, a minha família, meus filhos, meus netos, a meu querido Estado de Goiás, que depositou em mim a confiança para representá-los nessa casa. Por último, agradeço a todos os brasileiros pela intensa participação cívica manifestada, em especial na data de hoje em todo Brasil. Como dizia Chico Xavier e volto a repetir: “ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim”. Essa é a hora, esse é o momento de escrevermos a história democrática do país. O Brasil precisa do seu voto, não lhe falte. É a hora desse parlamento retomar o protagonismo que foi esquecido durante esses últimos anos. Concluo senhor presidente, dizendo que o Brasil clama e os fatos demonstram que devemos autorizar a instauração do processo contra a senhora presidente da República, Dilma Vana Rousseff. E que Deus nos ilumine (itálicos meus).

Esse “léxico político”, como diria Almeida, comporta um conjunto de valores e evoca a posição de quem se sente representante de um coletivo, apelando para as categorias abstratas de “nação brasileira” e “democracia”. Assim como Arantes, os valores simbólicos associados a ideia de “Deus”, “família” e “nação” foram evocados para representar um sentimento de coletividade e conferir credibilidade ao discurso; essa posição de moralidade e honradez é construída a partir das acusações de “corrupção” por parte dos adversários políticos. Arantes aciona em seu discurso os casos do “mensalão” e o “petrolão” como um modo de desqualificar os governos Lula-Dilma, colando no imaginário coletivo a ideia de um inimigo público.
Quanto à estratégia de desqualificação, os parlamentares evangélicos apresentaram os discursos mais violentos, acionando o imaginário bélico com o qual afirmam lidar com os demônios. Por vezes os limites de constrangimento que a tribuna do parlamento parece exigir não foram suficientes para que alguns parlamentares evangélicos vissem seus mandatos como extensão de seus púlpitos eclesiásticos. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), que também é pastor e circula pelo Brasil fazendo conferências religiosas, afirmou em seu voto:

Com a ajuda de Deus, pela família, pelo brasileiro, pelos evangélicos de toda a nação, pelos meninos do MBL, pelo Vem pra Rua. Dizendo que Olavo (de Carvalho) tem razão, sim. Dizendo tchau a esta querida. Dizendo tchau ao PT, Partido das Trevas. Eu voto sim ao impeachment (itálicos meus).

A pretensão de Feliciano de falar “pelos evangélicos de toda a nação” teve reações contrárias nas redes sociais por partes de evangélicos que não se sentiram representados e por outros grupos progressistas. Além disso, o trocadilho com a sigla do PT como “Partido das Trevas” demonstra como sua atividade de parlamentar estava disposta a travar um combate – com as “hordas demoníacas” – no mesmo plano com a qual lida como sua atividade pastoral. Nesse plano, a linguagem religiosa e a linguagem política se confundem.
Por sua vez, o então deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e atual presidente da República pelo Partido Social Liberal (PSL), protagonizou momentos de combates bélicos a exemplo de outras polêmicas devido às suas declarações racistas, homofóbicas e fascistas:
  
Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve... Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff! Pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é sim! (itálicos meus).  

Assim como Feliciano, Bolsonaro, que semana depois foi batizado no rio Jordão pelo pastor Everaldo (o mesmo que se candidatou à presidência da República nas eleições de 2014), acionou em seu discurso o imaginário do inimigo a ser combatido e eliminado, focando especificamente no Partido dos Trabalhadores e na presidenta Dilma Rousseff. Em seus termos, o processo de impeachment de 2016 mimetizava o que chamava de “revolução” de 1964 contra os “comunistas”, especialmente ao evocar a memória de Ustra, reconhecido torturador do regime militar. Por sua vez, outros poucos deputados procuravam demonstrar que o mérito jurídico da questão em pauta pouco aparecia no debate, a saber, o chamado crime de responsabilidade fiscal.
Por certo ainda estamos por compreender os variados aspectos desse fatídico domingo e seus desdobramentos. Mas podemos nos perguntar: o que há de comum nos discursos de Cunha, Arantes, Feliciano e Bolsonaro – entre outros – proferidos na admissibilidade do processo de impeachment contra a então presidenta Dilma Rousseff? A cena pública da sessão do impeachment nos mostra que a linguagem religiosa acionada pelos parlamentares aproxima-se de uma gramática religiosa do sacrifício, cuja função seria produzir uma vítima expiatória da ira coletiva.

Religião como ato sacrificial.

O voto “sim” do então presidente da Câmara Eduardo Cunha foi precedido da frase: “que Deus tenha misericórdia dessa nação”. Essa gramática religiosa aciona uma imagem mítica pouco compreensível aos modernos. Em todos os discursos, a ênfase na soberania divina (Deus acima de todos), a ideia de um inimigo a ser combatido e eliminado (comunismo, PT) e a própria noção de “misericórdia” divina em contraposição à ira divina, apontam para o imaginário da religião como ato sacrificial. Essas noções pressupõem a necessidade de uma vítima sacrificial, uma vítima expiatória.
Em contraposição a ideia ocidental de que a noção de “religião” significa “religar”, do verbo latim religare, Giorgio Agamben (2007) aponta que seu sentido indica justamente o contrário, “separar”. Agamben nota que o sentido de sagrado implicava numa “separação” do profano, lembrando que essa separação nos ritos antigos era operada por meio dos sacrifícios. Renê Girard argumenta que a função social do sacrifício nas sociedades ditas “primitivas” cumpria o papel que o sistema judiciário desempenha nas sociedades modernas: “é nas sociedades desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmo ameaçadas pela vingança que o sacrifício e o rito em geral devem desempenhar um papel essencial” (2008, p. 31). Nesse sentido, a própria noção de “sacrifício” aponta para a ideia de corte, fissura, separação da vítima sacrificial, sobre quem recai a ira coletiva.
Desse modo, é curioso que a gramática religiosa dos parlamentares durante o voto pró- impeachment, cujos discursos supõem operar uma “ligação” (religare) da “família” e da “nação” brasileira por meio de seus valores cívicos e sagrados, na verdade operam o cuidado em manter a separação (religio) ao evocar os elementos sacrificiais do inimigo a ser eliminado, o “bode expiatório”, como diria Girard. Nessa gramática, a divindade evocada exige uma vítima sacrificial a fim de cumprir o papel de apaziguamento para crise estabelecida. Aliás, a própria noção de “golpe”, despida de seu sentido político moderno, lembra bem o que se sucedia com a vítima sacrificial. Assim, fica claro que o pedido de “proteção” e de “misericórdia”, na abertura da sessão e no voto de Cunha, dirige-se à uma divindade pronta a despertar sua ira. O “uso desenfreado dessa herança bíblica”, como diria Habermas, continua a desafiar as linguagens seculares dos modernos. Por isso mesmo a cena da sessão do impeachment chocou-nos.

Epílogo: sobre pizzas e agonias

Por fim, termino com uma narrativa que tenta captar algumas impressões observadas naquele exaustivo domingo. As trocas de acusações “agonísticas”, para lembrar um termo usado por Marcel Mauss,[2] acirravam os ânimos dos exaustos e exaltados deputados na sessão da Câmara, tanto entre os que se dispunham a acusar a presidenta Dilma quanto entre os que buscavam em vão defendê-la. Apesar do interesse com a qual eu acompanhava o desenrolar do processo, estava também cansado (e confesso que também de ânimo exaltado). Por volta das 21h, resolvi buscar uma pizza que havia encomendado numa pizzaria próximo de minha casa. Enquanto aguardava a vez de ser atendido, observei que funcionários e clientes da pizzaria também acompanhavam pela TV a agonística sessão do impeachment.
Entretanto, pelos comentários, percebi que a maioria não entendia o que se passava, enquanto outros tentavam explicar o processo. Entre os comentários, havia até quem não sabia quem era Eduardo Cunha ou mesmo ou quem era o então vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP), quando a conversa se tratava de arriscar uma possível linha sucessória presidencial. Outros não pareciam interessados na questão, apesar de demonstrarem incômodo com tudo que se passava.
Mantive o silêncio e continuei a observar as reações. Foi quando um dos clientes, demonstrando impaciência com a classe política que discursava (caricaturada a seu modo), sugeriu que se trocasse de canal e todos passaram a assistir o Programa Silvio Santos, do SBT. Tal cena lembrou-me a famosa frase de Aristides Lobo destacada por José Murilo de Carvalho (1987) e que poderíamos parafrasear do seguinte modo: “bestializados”, sem compreender o que se passava, as pessoas continuavam a degustar suas pizzas, sem imaginar o cenário que as aguardavam. Afinal, as divindades do capitalismo neoliberal não cessam de exigir sacrifícios individuais ou coletivos. O cutelo já foi levantado: quem será a próxima vítima?
  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo. Boitempo, 2007.
ALMEIDA, Ronaldo. “Os deuses do parlamento”. In. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo. Annabrume, 2002.
CAROZZI, Maria Julia (1994). “Tendências no estudo dos novos movimentos religiosos na América: os últimos 20 anos”. In: Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais da ANPOCS. Rio de Janeiro, n. 37, pp. 61-78.
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. C&A das Letras, 1987.
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo. Attar Editorial. 2002.
___________. “Religião, Estado, modernidade: notas a propósitos de fatos provisórios”. In. Estudos Avançados, 18 (52), 2004.
GIRARD, Renê. A violência e o sagrado. São Paulo. Paz e Terra, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Fé e saber. São Paulo. Unesp, 2013.
HIRSCHKIND, Charles. “Existe um corpo secular?”. In. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 37(1), 2017.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas”, In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. 2003.
MONTERO, Paula (2003). “Max Weber e os dilemas da secularização: o lugar das religiões no mundo contemporâneo”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 65, março de 2003, p. 34-44.
_________ (2009). “Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 84, julho de 2009, p. 119-213.
_________ (2012). “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. In: Religião e sociedade. Rio de Janeiro, 32 (1), p. 167-183.
ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. “A religião e a esfera pública”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 12, 2008.

Notas


[1] O processo de impeachment havia sido aceito com base no pedido do jurista Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e da advogada Janaina Pascoal, lido por Cunha em 03 de dezembro de 2015. O relatório da comissão, lido na sessão do dia 17 de abril pelo deputado e relator Jovair Arantes (PTB-GO), baseava-se no chamado “crime de responsabilidade”, que ficou conhecido como “pedaladas fiscais”.
[2] Ao analisar as disputas em torno da instituição do potlatch, Mauss afirma que no ritual assiste-se uma “luta dos nobres para assegurar entre eles uma hierarquia que ulteriormente beneficiará seu clã” (2003, p. 192).


*José Edilson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Sem cortina: sobre a perversa trama do machismo

Por Erineide Souza de Oliveira*

Estamos inseridos numa sociedade onde as desigualdades entre homens e mulheres são alarmantes, cuja necessidade de intervenção se faz urgente. É com o objetivo de propor uma reflexão conjunta sobre a condição da mulher em nossa sociedade, que os convido a ponderar sobre como o cenário atual é dramático para nós, mulheres.
Ainda estamos morrendo por conta de uma estrutura social e cultural que tenta nos aniquilar. Para melhorar esse cenário de desvantagem, é preciso, entre outras ações, de mudança de postura e do envolvimento de uma sociedade inteira. É urgente discutir igualdade de oportunidades e de direitos nas relações de gênero em que os homens nos impõem força de violência e matam mulheres em escala crescente.
Sabemos que há muitos homens sensíveis a essa realidade, que lutam conosco por uma sociedade mais justa, onde mulheres não sejam mais sujeitadas à violência de gênero. É inegável que há um padrão posto, numa sociedade em cujas veias está entranhada a ideia de que os homens são superiores às mulheres e se sentem no direito de  ter domínio e violar nossos corpos.
Todas as violências às quais somos expostas nos matam um pouco das mais variadas formas. Algumas vezes conseguimos renascer de todas as amarras que nos são impostas pelo patriarcado. Muitas mulheres não tiveram e não têm a mesma condição. Todos os dias mulheres morrem e outras se calam pra sempre. Algumas em suas casas e, infelizmente, centenas e centenas em seus túmulos.
Assim, todas nós morremos um pouco, pela sensação de vulnerabilidade que nos invade, por empatia e porque somos potenciais vítimas desse sistema excludente e dessa cultura de machismo que mata. É importante ressaltar que a luta das mulheres, entre outras necessidades, é pelo direito de fazermos escolhas, de andarmos em segurança, de sermos olhadas como seres que têm desejo, e que merecem viver em plenitude, sem sermos submetidas ao controle masculino.
É equivocada a especulação de que estamos disputando com os homens. Não queremos os lugares dos homens, apenas queremos lugares (também). Diante desse cenário, é preciso ponderar que a construção de uma sociedade saudável só será possível se todos nós estivermos abertos para mudanças necessárias.
É imperioso repensar nossa cultura e reposicionar os homens nas relações abusivas que estabeleceram e ainda estabelecem com as mulheres. Rever nossas posturas e os papeis impostos socialmente, para homens e mulheres, são necessários para dar lugar a uma nova cultura onde as expressões de masculinidade não sejam tão agressivas e danosas para as mulheres.


*Erineide Souza de Oliveira é Assistente Social, Poeta e Feminista.