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segunda-feira, 1 de junho de 2020

De Kant a Schleiermacher: implicações filosóficas


Por José Edilson Teles*

            Immanuel Kant: sobre a crítica Iluminista.

Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão cujo pensamento contribuiu para o desenvolvimento da filosofia Iluminista no século XVIII, é considerado o demolidor das estruturas dogmáticas da tradição cristã ao relegar a transcendência à esfera da experiência. Talvez, nenhum outro pensador influenciou tão profundamente os rumos da filosofia e da teologia nos séculos XIX e XX. Tudo que se produziu de filosofia e teologia depois de Kant não poderia desconsiderar o impacto das consequências de seu sistema. De certo modo, ainda é difícil escapar das amarras conceituais de seu sistema filosófico, especialmente no Ocidente. O que pretendo fazer neste ensaio é elaborar breves apontamentos acerca de algumas implicações que o sistema kantiano exerceu sobre um modo de fazer teologia. Como se sustenta o tipo de saber reivindicado pela teologia?
O primeiro problema (não necessariamente o primeiro de uma série) é a questão do conhecimento. O que somos capazes de conhecer? A filosofia kantiana procurava sistematizar e combinar elementos de duas grandes correntes filosóficas até então incompatíveis e irreconciliáveis acerca dessa questão: por um lado o idealismo cartesiano que atribuía à nossa capacidade de conhecer certo inatismo e da qual os teólogos mais se identificavam; e por outro, o empirismo inglês desenvolvido por Francis Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), que defendiam a precedência da experiência na constituição do conhecimento.
De certa forma, há uma superação nesta combinação ou mais acertadamente, Kant uniu ambas correntes num centro, criando um novo sistema. Concordava com os empiristas ao dizer que todo nosso conhecimento do mundo exterior chega a nós através dos sentidos. Por outro lado, sustentava como os idealistas, que a própria mente contribui para nosso conhecimento da realidade. Entretanto, deve-se notar que para Kant, não é possível conhecer a realidade em si mesma ou sua essência, levando-o a construir um “limite para a razão”.[1]
Qual a implicação dessa questão para a teologia? O sistema kantiano implicava numa rejeição a todo conhecimento metafísico, comum principalmente entre os idealistas ou aprioristas. Kant, por exemplo, destrona as pretensões da teologia cristã ao demonstrar as contradições e os limites da mente humana na reivindicação de um conhecimento ontológico, isto é, não é possível a razão humana estabelecer um conhecimento do Ser em si ou sua essência. Seguindo Hume, Kant criticava a filosofia metafísica (e a teologia) que acreditava estabelecer por meio de categorias do pensamento humano (tempo, espaço, substância) ideias religiosas de Deus, como liberdade e imortalidade. Este procedimento lhe parecia impossível, visto que a razão humana era finita, não podendo, portanto, alcançar o infinito.
Sendo assim, as categorias do pensamento humano seriam válidas apenas para compreensão das coisas finitas, apenas para descrever nossas relações com o mundo. A proposta de transcender o finito tornava-se problemática para os metafísicos, logo também aos teólogos. A partir daí, não seria mais possível conceituar “Deus” como na teologia tradicional, muito menos pela apropriação das categorias filosóficas metafísicas.
De acordo com o sistema kantiano, a nossa racionalidade organiza a forma de conhecer por meio de dois processos: por um lado temos a capacidade de desenvolver pensamentos lógicos e abstratos chamado por Kant de razão pura. Este campo de conhecimento está sujeito à verificação, a experimentação e a comprovação. Por outro, parte da nossa racionalidade processa um tipo de conhecimento prático, chamado de razão prática, onde seria concebido, por exemplo, a moral, a religião, o sentimento.
A consequência imediata, é que não se pode mais pensar em “Deus” em termos de causa ou substancia (inata) universal. Desse modo, a religião, até então tida como um elemento sobrenatural ou transcendente reduz-se à esfera da experiência, submetida a uma lei moral, logo natural.
Sendo assim, para Kant pensar é diferente de conhecer, cuja fonte está na experiência. De acordo com Kant, só podemos conhecer os fenômenos e não a coisa em si. Por exemplo: só podemos conhecer a ideia de liberdade, mas não a liberdade, visto que ela é abstrata. No caso da religião, só podemos concebê-la pela moral e não em sua essência, isto é, o finito não pode apreender Deus por suas categorias. Conhecemos apenas uma ideia de Deus cuja manifestação se daria na experiência, numa lei universal chamada “moral”.
A categoria de causalidade, por exemplo, descreve a inter-relação entre experiências finitas. O tempo é a principal forma finita de transitoriedade, incapaz de ser fixado num momento. Se o fixamos, ele deixa de existir. Para Kant, estas categorias só podem ser utilizadas no domínio dos fenômenos, que são as coisas aparecendo no tempo e no espaço. É por isso que os conceitos de Deus, liberdade e imortalidade não podem ser empregados nessa estrutura racional, mas deve ser relegada à estrutura “prática”, das experiências. Embora esses conceitos não fossem demonstráveis, davam coerência ao pensamento e comportamento éticos.

Friedrich Schleiermacher: sobre a reação romântica. 

O teólogo e filósofo alemão Paul Tillich (1886-1965) pode ser listado entre os pensadores que reconhecia a crítica de Kant como “válida”, embora também afirmasse que ela não atingisse o princípio do problema.[2] E isso não seria possível pelo seguinte motivo: Kant pressupunha a separação entre finito e infinito, base na qual a teologia ontológica se sustentava. O sistema kantiano constituía-se, conforme a descrição de Tillich, num “princípio de distanciamento”[3] entre sujeito e objeto, isto é, um abismo instransponível entre o finito (natureza, homem) e o infinito (Deus, espírito). Esta separação suscitou a reação de alguns teólogos, como por exemplo, Friedrich Schleiermacher (1768-1834), considerado pai da teologia moderna, ao reformular a noção de religião como “sentimento de dependência absoluta” percebida pela intuição.[4]
Para finalizar, ainda é preciso considerar o fato de que Kant não configura o que atualmente se concebe como “ateu”, se é que esta categoria é isenta de ambiguidade; pelo contrário, era de tradição protestante, além de um exímio filósofo da religião. A ideia de ateísmo tal como concebemos, não estava presente nos filósofos dos séculos XVI à XVII, nem mesmo, nos mais implacáveis críticos da religião. Sem dúvida, os valores de sua época foram moldados por questões religiosas, tornando-se, portanto, o centro de suas preocupações. Certamente, denunciaram o que classificaram como “superstições”, “mitos” ou “dogmas” e resistiram submeter-se ao monopólio institucional da religião. Apesar disso, nutriam expectativas positivas por uma ideia de religião natural ou religião moral, regidas por uma razão em busca da “verdade”.
A noção de ateu, por sua vez, foi construída num novo contexto, onde o desenvolvimento científico construiria uma nova “imagem do mundo”, colocando em cheque, inclusive os modelos da própria filosofia. Ainda assim, a noção de ateu não me parece tão “pura” como se pretende atribuir; aliás, como diriam os antropólogos, nenhuma construção conceitual é “pura”. É sempre fruto de determinados contextos histórico-culturais. Não era o caso de Kant, nem mesmo de muitos filósofos iluministas.
Esse tipo de anacronismo histórico é que nos afasta de uma compreensão dos séculos XVII e XVIII, pois, insistimos em colocar sobre eles ou na “boca” deles nossos dilemas conceituais e existenciais. Desse modo, nosso empreendimento para compreender a teologia moderna, cujo precursor foi Schleiermacher, só será possível, se estivermos dispostos a compreender os valores, os embates filosóficos e suas implicações, bem como a dinâmica condicionada pelo seu tempo. Caso contrário, nossas críticas não seriam descontextualizadas congelando-nos pela inabilidade do diálogo?



* José Edilson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).

Notas:

[1] C.f. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. São Paulo. Escala, S/ano. Coleção grandes obras do pensamento universal. 
[2] P. TILLICH, “significado histórico da filosofia existencial”, in: Teologia da Cultura. São Paulo, Fonte Editorial, 2009, p. 129.
[3] TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo, ASTE, 1999, p. 118.
[4] SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião: discursos a seus menosprezadores eruditos. São Paulo. Novo Século, 2000. Em reação à postura iluminista, Schleiermacher questionava em tom irônico: “resolvam-me portanto, interlocutores mui queridos, de onde haveis tirado estes conceitos de religião, que constituem o objeto de vosso desprezo?” (p. 18). Em seguida estabelece sua definição, afirmando que a essência da religião não é “pensamento nem ação, senão intuição e sentimento” (p. 33).