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segunda-feira, 1 de junho de 2020

De Kant a Schleiermacher: implicações filosóficas


Por José Edilson Teles*

            Immanuel Kant: sobre a crítica Iluminista.

Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão cujo pensamento contribuiu para o desenvolvimento da filosofia Iluminista no século XVIII, é considerado o demolidor das estruturas dogmáticas da tradição cristã ao relegar a transcendência à esfera da experiência. Talvez, nenhum outro pensador influenciou tão profundamente os rumos da filosofia e da teologia nos séculos XIX e XX. Tudo que se produziu de filosofia e teologia depois de Kant não poderia desconsiderar o impacto das consequências de seu sistema. De certo modo, ainda é difícil escapar das amarras conceituais de seu sistema filosófico, especialmente no Ocidente. O que pretendo fazer neste ensaio é elaborar breves apontamentos acerca de algumas implicações que o sistema kantiano exerceu sobre um modo de fazer teologia. Como se sustenta o tipo de saber reivindicado pela teologia?
O primeiro problema (não necessariamente o primeiro de uma série) é a questão do conhecimento. O que somos capazes de conhecer? A filosofia kantiana procurava sistematizar e combinar elementos de duas grandes correntes filosóficas até então incompatíveis e irreconciliáveis acerca dessa questão: por um lado o idealismo cartesiano que atribuía à nossa capacidade de conhecer certo inatismo e da qual os teólogos mais se identificavam; e por outro, o empirismo inglês desenvolvido por Francis Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), que defendiam a precedência da experiência na constituição do conhecimento.
De certa forma, há uma superação nesta combinação ou mais acertadamente, Kant uniu ambas correntes num centro, criando um novo sistema. Concordava com os empiristas ao dizer que todo nosso conhecimento do mundo exterior chega a nós através dos sentidos. Por outro lado, sustentava como os idealistas, que a própria mente contribui para nosso conhecimento da realidade. Entretanto, deve-se notar que para Kant, não é possível conhecer a realidade em si mesma ou sua essência, levando-o a construir um “limite para a razão”.[1]
Qual a implicação dessa questão para a teologia? O sistema kantiano implicava numa rejeição a todo conhecimento metafísico, comum principalmente entre os idealistas ou aprioristas. Kant, por exemplo, destrona as pretensões da teologia cristã ao demonstrar as contradições e os limites da mente humana na reivindicação de um conhecimento ontológico, isto é, não é possível a razão humana estabelecer um conhecimento do Ser em si ou sua essência. Seguindo Hume, Kant criticava a filosofia metafísica (e a teologia) que acreditava estabelecer por meio de categorias do pensamento humano (tempo, espaço, substância) ideias religiosas de Deus, como liberdade e imortalidade. Este procedimento lhe parecia impossível, visto que a razão humana era finita, não podendo, portanto, alcançar o infinito.
Sendo assim, as categorias do pensamento humano seriam válidas apenas para compreensão das coisas finitas, apenas para descrever nossas relações com o mundo. A proposta de transcender o finito tornava-se problemática para os metafísicos, logo também aos teólogos. A partir daí, não seria mais possível conceituar “Deus” como na teologia tradicional, muito menos pela apropriação das categorias filosóficas metafísicas.
De acordo com o sistema kantiano, a nossa racionalidade organiza a forma de conhecer por meio de dois processos: por um lado temos a capacidade de desenvolver pensamentos lógicos e abstratos chamado por Kant de razão pura. Este campo de conhecimento está sujeito à verificação, a experimentação e a comprovação. Por outro, parte da nossa racionalidade processa um tipo de conhecimento prático, chamado de razão prática, onde seria concebido, por exemplo, a moral, a religião, o sentimento.
A consequência imediata, é que não se pode mais pensar em “Deus” em termos de causa ou substancia (inata) universal. Desse modo, a religião, até então tida como um elemento sobrenatural ou transcendente reduz-se à esfera da experiência, submetida a uma lei moral, logo natural.
Sendo assim, para Kant pensar é diferente de conhecer, cuja fonte está na experiência. De acordo com Kant, só podemos conhecer os fenômenos e não a coisa em si. Por exemplo: só podemos conhecer a ideia de liberdade, mas não a liberdade, visto que ela é abstrata. No caso da religião, só podemos concebê-la pela moral e não em sua essência, isto é, o finito não pode apreender Deus por suas categorias. Conhecemos apenas uma ideia de Deus cuja manifestação se daria na experiência, numa lei universal chamada “moral”.
A categoria de causalidade, por exemplo, descreve a inter-relação entre experiências finitas. O tempo é a principal forma finita de transitoriedade, incapaz de ser fixado num momento. Se o fixamos, ele deixa de existir. Para Kant, estas categorias só podem ser utilizadas no domínio dos fenômenos, que são as coisas aparecendo no tempo e no espaço. É por isso que os conceitos de Deus, liberdade e imortalidade não podem ser empregados nessa estrutura racional, mas deve ser relegada à estrutura “prática”, das experiências. Embora esses conceitos não fossem demonstráveis, davam coerência ao pensamento e comportamento éticos.

Friedrich Schleiermacher: sobre a reação romântica. 

O teólogo e filósofo alemão Paul Tillich (1886-1965) pode ser listado entre os pensadores que reconhecia a crítica de Kant como “válida”, embora também afirmasse que ela não atingisse o princípio do problema.[2] E isso não seria possível pelo seguinte motivo: Kant pressupunha a separação entre finito e infinito, base na qual a teologia ontológica se sustentava. O sistema kantiano constituía-se, conforme a descrição de Tillich, num “princípio de distanciamento”[3] entre sujeito e objeto, isto é, um abismo instransponível entre o finito (natureza, homem) e o infinito (Deus, espírito). Esta separação suscitou a reação de alguns teólogos, como por exemplo, Friedrich Schleiermacher (1768-1834), considerado pai da teologia moderna, ao reformular a noção de religião como “sentimento de dependência absoluta” percebida pela intuição.[4]
Para finalizar, ainda é preciso considerar o fato de que Kant não configura o que atualmente se concebe como “ateu”, se é que esta categoria é isenta de ambiguidade; pelo contrário, era de tradição protestante, além de um exímio filósofo da religião. A ideia de ateísmo tal como concebemos, não estava presente nos filósofos dos séculos XVI à XVII, nem mesmo, nos mais implacáveis críticos da religião. Sem dúvida, os valores de sua época foram moldados por questões religiosas, tornando-se, portanto, o centro de suas preocupações. Certamente, denunciaram o que classificaram como “superstições”, “mitos” ou “dogmas” e resistiram submeter-se ao monopólio institucional da religião. Apesar disso, nutriam expectativas positivas por uma ideia de religião natural ou religião moral, regidas por uma razão em busca da “verdade”.
A noção de ateu, por sua vez, foi construída num novo contexto, onde o desenvolvimento científico construiria uma nova “imagem do mundo”, colocando em cheque, inclusive os modelos da própria filosofia. Ainda assim, a noção de ateu não me parece tão “pura” como se pretende atribuir; aliás, como diriam os antropólogos, nenhuma construção conceitual é “pura”. É sempre fruto de determinados contextos histórico-culturais. Não era o caso de Kant, nem mesmo de muitos filósofos iluministas.
Esse tipo de anacronismo histórico é que nos afasta de uma compreensão dos séculos XVII e XVIII, pois, insistimos em colocar sobre eles ou na “boca” deles nossos dilemas conceituais e existenciais. Desse modo, nosso empreendimento para compreender a teologia moderna, cujo precursor foi Schleiermacher, só será possível, se estivermos dispostos a compreender os valores, os embates filosóficos e suas implicações, bem como a dinâmica condicionada pelo seu tempo. Caso contrário, nossas críticas não seriam descontextualizadas congelando-nos pela inabilidade do diálogo?



* José Edilson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).

Notas:

[1] C.f. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. São Paulo. Escala, S/ano. Coleção grandes obras do pensamento universal. 
[2] P. TILLICH, “significado histórico da filosofia existencial”, in: Teologia da Cultura. São Paulo, Fonte Editorial, 2009, p. 129.
[3] TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo, ASTE, 1999, p. 118.
[4] SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião: discursos a seus menosprezadores eruditos. São Paulo. Novo Século, 2000. Em reação à postura iluminista, Schleiermacher questionava em tom irônico: “resolvam-me portanto, interlocutores mui queridos, de onde haveis tirado estes conceitos de religião, que constituem o objeto de vosso desprezo?” (p. 18). Em seguida estabelece sua definição, afirmando que a essência da religião não é “pensamento nem ação, senão intuição e sentimento” (p. 33).   

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Religião como ato sacrificial: uma leitura da sessão de impeachment da presidenta Dilma Rousseff

Por José Edilson Teles*


Resumo.

Esse breve ensaio pretende problematizar os incômodos que a linguagem religiosa produziu durante a sessão que votou pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff (PT) em abril de 2016. Essa sessão tornou evidente, entre outros elementos, as características da laicidade brasileira. Para tratar desse problema, parto da seguinte questão: por que o discurso religioso de alguns parlamentares favoráveis ao impeachment causou (certo) desconforto público? Minha hipótese consiste em demonstrar que a gramática religiosa acionada pelos parlamentares em seus votos pró-impeachment apresentam os elementos de uma religião como ato sacrificial, cuja função estabelece a vítima como canalizadora da crise coletiva. 


Palavras-chave: Impeachment, religião, laicidade, gramática religiosa, sacrifício.




As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, 2002, p. 41.  

Tal como mostra hoje, uma vez mais, o uso desenfreado dessa herança bíblica, nós ainda não dispomos de um conceito apropriado para a diferença semântica entre o moralmente incorreto e o profundamente mal. Não existe o demônio, mas o anjo caído segue seu curso calamitoso – seja nos bens invertidos da ação monstruosa, seja também no incontrolável ímpeto de vingança que o segue de perto.
HABERMAS, Jürgen. Fé e saber, 2012, p. 18.

Prólogo: por que a linguagem religiosa incomoda os modernos?

Em Fé e saber, Jürgen Habermas havia colocado o desafio de pensar o lugar da religião no mundo moderno após o acontecimento de 11 de setembro de 2001. Em linhas gerais, eis o problema: de que modo a “tensão entre a sociedade secular e a religião” desafia os modelos analíticos que tratam do processo de secularização e da emergência da esfera pública nas sociedades modernas? Segundo Habermas, ao menos duas explicações convergiram para o diagnóstico equivocado quanto à presença das religiões nas sociedades seculares: a primeira por enfatizar o otimismo do progresso da modernidade “desencantada” ao pressupor domesticação e substituição dos modos de vida religiosa por equivalentes racionais ou valores modernos; a segunda por enfatizar que os valores modernos são apropriações ilícitas dos valores religiosos e, portanto, herdeira dos motivos de sua ruína.
Segundo Habermas o equívoco de ambas as leituras consiste em considerar a secularização como a superação da religião pelas forças produtivas e da técnica advindas com o capitalismo. Nesse “jogo de soma zero”, como diz Habermas, “um só pode ganhar à custa do outro” (2013, p. 6). Nesse sentido, a religião é vista (no mínimo) como uma intrusa que insiste em estar fora do seu “devido” lugar, à esfera da vida privada. A fim de propor uma releitura do paradigma da secularização, Habermas argumenta que o conceito de sociedades “pós-seculares” tem como objetivo desenvolver uma nova perspectiva sobre as tensões entre as linguagens religiosas e as linguagens seculares. Portanto, podemos concluir que para Habermas “a história da modernização não coincidiu sempre com a história da secularização” (MONTERO, 2009, p. 206).
Segundo Habermas, o desafio das sociedades “pós-seculares” seria encontrar um modo de ajustar-se “à sobrevivência de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante” (2013, p. 6). Preocupado com a busca de consenso na esfera pública, espaço do agir comunicativo entre os diversos falantes (inclusive os religiosos), Habermas insiste na possibilidade da pluralidade de vozes que devem caracterizar o que chama de sociedade “pós-secular”. Se a linguagem religiosa parece causar desconforto numa sociedade que explica seu mundo nos termos de um saber técnico-científico, tal como o exemplo da engenharia genética, a provocação de Habermas é que essa linguagem mítica não deve ser de todo descartada, mas “traduzida”. Essa seria, segundo Habermas, a relação entre (religião) e saber (ciência e política).
O otimismo de Habermas em “traduzir” a linguagem mítico-religiosa nos termos das linguagens seculares não apenas reconhece as “funções sociais positivas” da religião (ZABATIERO, 2008, p. 148), mas também pressupõe que “as religiões podem ter contribuições cognitivas para a esfera política” (MONTERO, 2009, p. 207). Nesse sentido, o otimismo de Habermas sugere que a religião seja concebida como um tipo de conhecimento passível de tradução para os problemas públicos, especialmente quando se trata dos valores morais no mundo da vida.
Apesar de colocar em novos termos a leitura teleológica da secularização, o argumento de Habermas é marcado por uma teoria normativa da esfera pública, uma vez que sua preocupação esta voltada para a produção de consensos entre as múltiplas vozes que disputam os sentidos do mundo da vida. Contudo, meu propósito não é “traduzir” a linguagem religiosa nos termos habermasianos, mas problematizar o desconforto que essa linguagem produz no contexto político do mundo moderno. Por que a linguagem religiosa causa incômodo nesse contexto? Por que a religião é percebida como uma “visitante” indesejada e fora do lugar? Meu argumento é que esse incômodo está relacionado à herança do conceito de laicidade ou secularismo como oposição à ideia de religião. 
Pensando no contexto brasileiro, vejamos a configuração de uma específica gramática religiosa e o desconforto – ou constrangimento – que essa linguagem produz num lugar onde aparentemente – julga-se que – não deveria estar. Nesse ponto, concentro-me nos sentidos que as palavras comunicam, nas práticas que produzem. Para Mikhail Bakhtin, “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (2002, p. 36). A própria noção de “gramática religiosa”, tal como utilizo, indica um conjunto de regras que organizam a experiência da linguagem e as interações sociais. Tomemos como exemplo desse desconforto a cena do processo de impeachment contra a então presidenta da República, Dilma Rousseff (PT).

Sobre um domingo agonístico.

Domingo, 17 de abril de 2016, dia decisivo (que se estendeu por horas, desde as 14h à madrugada) para a admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff.[1] Após uma série de reviravoltas políticas e jurídicas (que se arrastava desde meados de 2015, segundo ano de seu governo), o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), declarou aberta a sessão com a seguinte frase: “está aberta a sessão. Sob proteção de Deus e em nome do povo brasileiro iniciamos nossos trabalhos” (itálico nosso). Apesar do pedido de “proteção divina”, do início ao fim, a sessão no parlamento foi tumultuada: ora se ouvia uníssonas vozes de “fora PT” por parte da oposição ao governo Dilma, ora se ouvia “não vai ter golpe” por parte dos que defendiam a presidenta. A sessão foi, de fato, fatídica nas duas acepções que esse termo pode adquirir: por um lado, selou o destino combinado entre agentes políticos e elites econômicas; por outro, abriu caminhos para a trágica ruptura do pacto democrático.
A sessão de votação do processo de impeachment tornou evidente a presença (incomoda) do discurso religioso, de modo que, para fins analíticos, exige-se uma releitura do conceito de religião, bem como do que entendemos por laicidade. Seguindo as pistas teóricas de Charles Hirschkind, minha leitura implica em não tomar esses dois conceitos como pares de oposição, mas como a articulação de “instituições, ideia e orientações afetivas que constituem uma dimensão importante do que chamamos de modernidade” (2017, p. 175).  
Emerson Giumbelli (2004, p. 48) argumenta que no caso da formação do Estado brasileiro, a própria construção da ideia de modernidade nasce imbricada com o religioso e não a parte dele. A recente onda dos evangélicos na política partidária, que passaram a concorrer os mais variados setores da vida social e a exigir do Estado os mesmos privilégios concedidos à Igreja Católica, recoloca o problema normativo de que a religião está “fora do lugar”; entretanto, na formação do Estado brasileiro o catolicismo sempre esteve presente, mas sua gramática religiosa não incomodava, tal como parece ser as estratégias de visibilidade e o discurso bélico-exclusivista de alguns setores evangélicos, especialmente os chamados pentecostais.
Em Os deuses do parlamento, Ronaldo de Almeida nos lembra que a frase proferida por Cunha na abertura da sessão, que põe em evidência as características do Estado laico brasileiro, não era somente um “ato de (sua) vontade” como um evangélico autodeclarado, mas também um “rito de abertura das sessões do Poder Legislativo, tanto da Câmara como do Senado Federal” (2017, p. 71). Se a frase de Cunha é um rito naturalizado na consolidação da laicidade do Estado brasileiro, o processo de votação impeachment colocaria o problema da relação entre religião e política em superfície. O desconforto produzido por essa linguagem religiosa torna evidente a ferida narcísica de um ideal de laicidade que havíamos naturalizado (Cf. CAROZZI, 1994; GIUMBELLI, 2002, 2004; MONTERO 2003, 2009, 2012).
Ronaldo de Almeida destaca o “léxico político” mobilizado no voto dos parlamentares pró- impeachment, tais como a noção de “Deus” cristão, a noção de “família tradicional” e a ideia de “nação”. Segundo Almeida essas três noções “operaram como elementos unificadores e transversais” de valores do “repertório político liberal moderno” (2017, p. 71). Nesse caso, não se trata de associar o discurso religioso ou o chamado “conservadorismo” à conta dos evangélicos, mas chamar atenção para o substrato comum, ou melhor, para os elementos que foram capazes de alcançar diversos grupos. Vejamos alguns desses elementos.

Gramática do sacrifício no parlamento.

O discurso do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), que fez a leitura do relatório após a abertura feita por Cunha, apresenta os elementos desse “substrato cultural” compartilhado por diversos grupos sociais ao introduzir uma citação de Chico Xavier. Após uma leitura de aproximadamente 20 minutos do relatório favorável à instauração do impeachment, Arantes termina nos seguintes termos:

Peço licença para agradecer a Deus, a minha família, meus filhos, meus netos, a meu querido Estado de Goiás, que depositou em mim a confiança para representá-los nessa casa. Por último, agradeço a todos os brasileiros pela intensa participação cívica manifestada, em especial na data de hoje em todo Brasil. Como dizia Chico Xavier e volto a repetir: “ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim”. Essa é a hora, esse é o momento de escrevermos a história democrática do país. O Brasil precisa do seu voto, não lhe falte. É a hora desse parlamento retomar o protagonismo que foi esquecido durante esses últimos anos. Concluo senhor presidente, dizendo que o Brasil clama e os fatos demonstram que devemos autorizar a instauração do processo contra a senhora presidente da República, Dilma Vana Rousseff. E que Deus nos ilumine (itálicos meus).

Esse “léxico político”, como diria Almeida, comporta um conjunto de valores e evoca a posição de quem se sente representante de um coletivo, apelando para as categorias abstratas de “nação brasileira” e “democracia”. Assim como Arantes, os valores simbólicos associados a ideia de “Deus”, “família” e “nação” foram evocados para representar um sentimento de coletividade e conferir credibilidade ao discurso; essa posição de moralidade e honradez é construída a partir das acusações de “corrupção” por parte dos adversários políticos. Arantes aciona em seu discurso os casos do “mensalão” e o “petrolão” como um modo de desqualificar os governos Lula-Dilma, colando no imaginário coletivo a ideia de um inimigo público.
Quanto à estratégia de desqualificação, os parlamentares evangélicos apresentaram os discursos mais violentos, acionando o imaginário bélico com o qual afirmam lidar com os demônios. Por vezes os limites de constrangimento que a tribuna do parlamento parece exigir não foram suficientes para que alguns parlamentares evangélicos vissem seus mandatos como extensão de seus púlpitos eclesiásticos. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), que também é pastor e circula pelo Brasil fazendo conferências religiosas, afirmou em seu voto:

Com a ajuda de Deus, pela família, pelo brasileiro, pelos evangélicos de toda a nação, pelos meninos do MBL, pelo Vem pra Rua. Dizendo que Olavo (de Carvalho) tem razão, sim. Dizendo tchau a esta querida. Dizendo tchau ao PT, Partido das Trevas. Eu voto sim ao impeachment (itálicos meus).

A pretensão de Feliciano de falar “pelos evangélicos de toda a nação” teve reações contrárias nas redes sociais por partes de evangélicos que não se sentiram representados e por outros grupos progressistas. Além disso, o trocadilho com a sigla do PT como “Partido das Trevas” demonstra como sua atividade de parlamentar estava disposta a travar um combate – com as “hordas demoníacas” – no mesmo plano com a qual lida como sua atividade pastoral. Nesse plano, a linguagem religiosa e a linguagem política se confundem.
Por sua vez, o então deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e atual presidente da República pelo Partido Social Liberal (PSL), protagonizou momentos de combates bélicos a exemplo de outras polêmicas devido às suas declarações racistas, homofóbicas e fascistas:
  
Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve... Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff! Pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é sim! (itálicos meus).  

Assim como Feliciano, Bolsonaro, que semana depois foi batizado no rio Jordão pelo pastor Everaldo (o mesmo que se candidatou à presidência da República nas eleições de 2014), acionou em seu discurso o imaginário do inimigo a ser combatido e eliminado, focando especificamente no Partido dos Trabalhadores e na presidenta Dilma Rousseff. Em seus termos, o processo de impeachment de 2016 mimetizava o que chamava de “revolução” de 1964 contra os “comunistas”, especialmente ao evocar a memória de Ustra, reconhecido torturador do regime militar. Por sua vez, outros poucos deputados procuravam demonstrar que o mérito jurídico da questão em pauta pouco aparecia no debate, a saber, o chamado crime de responsabilidade fiscal.
Por certo ainda estamos por compreender os variados aspectos desse fatídico domingo e seus desdobramentos. Mas podemos nos perguntar: o que há de comum nos discursos de Cunha, Arantes, Feliciano e Bolsonaro – entre outros – proferidos na admissibilidade do processo de impeachment contra a então presidenta Dilma Rousseff? A cena pública da sessão do impeachment nos mostra que a linguagem religiosa acionada pelos parlamentares aproxima-se de uma gramática religiosa do sacrifício, cuja função seria produzir uma vítima expiatória da ira coletiva.

Religião como ato sacrificial.

O voto “sim” do então presidente da Câmara Eduardo Cunha foi precedido da frase: “que Deus tenha misericórdia dessa nação”. Essa gramática religiosa aciona uma imagem mítica pouco compreensível aos modernos. Em todos os discursos, a ênfase na soberania divina (Deus acima de todos), a ideia de um inimigo a ser combatido e eliminado (comunismo, PT) e a própria noção de “misericórdia” divina em contraposição à ira divina, apontam para o imaginário da religião como ato sacrificial. Essas noções pressupõem a necessidade de uma vítima sacrificial, uma vítima expiatória.
Em contraposição a ideia ocidental de que a noção de “religião” significa “religar”, do verbo latim religare, Giorgio Agamben (2007) aponta que seu sentido indica justamente o contrário, “separar”. Agamben nota que o sentido de sagrado implicava numa “separação” do profano, lembrando que essa separação nos ritos antigos era operada por meio dos sacrifícios. Renê Girard argumenta que a função social do sacrifício nas sociedades ditas “primitivas” cumpria o papel que o sistema judiciário desempenha nas sociedades modernas: “é nas sociedades desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmo ameaçadas pela vingança que o sacrifício e o rito em geral devem desempenhar um papel essencial” (2008, p. 31). Nesse sentido, a própria noção de “sacrifício” aponta para a ideia de corte, fissura, separação da vítima sacrificial, sobre quem recai a ira coletiva.
Desse modo, é curioso que a gramática religiosa dos parlamentares durante o voto pró- impeachment, cujos discursos supõem operar uma “ligação” (religare) da “família” e da “nação” brasileira por meio de seus valores cívicos e sagrados, na verdade operam o cuidado em manter a separação (religio) ao evocar os elementos sacrificiais do inimigo a ser eliminado, o “bode expiatório”, como diria Girard. Nessa gramática, a divindade evocada exige uma vítima sacrificial a fim de cumprir o papel de apaziguamento para crise estabelecida. Aliás, a própria noção de “golpe”, despida de seu sentido político moderno, lembra bem o que se sucedia com a vítima sacrificial. Assim, fica claro que o pedido de “proteção” e de “misericórdia”, na abertura da sessão e no voto de Cunha, dirige-se à uma divindade pronta a despertar sua ira. O “uso desenfreado dessa herança bíblica”, como diria Habermas, continua a desafiar as linguagens seculares dos modernos. Por isso mesmo a cena da sessão do impeachment chocou-nos.

Epílogo: sobre pizzas e agonias

Por fim, termino com uma narrativa que tenta captar algumas impressões observadas naquele exaustivo domingo. As trocas de acusações “agonísticas”, para lembrar um termo usado por Marcel Mauss,[2] acirravam os ânimos dos exaustos e exaltados deputados na sessão da Câmara, tanto entre os que se dispunham a acusar a presidenta Dilma quanto entre os que buscavam em vão defendê-la. Apesar do interesse com a qual eu acompanhava o desenrolar do processo, estava também cansado (e confesso que também de ânimo exaltado). Por volta das 21h, resolvi buscar uma pizza que havia encomendado numa pizzaria próximo de minha casa. Enquanto aguardava a vez de ser atendido, observei que funcionários e clientes da pizzaria também acompanhavam pela TV a agonística sessão do impeachment.
Entretanto, pelos comentários, percebi que a maioria não entendia o que se passava, enquanto outros tentavam explicar o processo. Entre os comentários, havia até quem não sabia quem era Eduardo Cunha ou mesmo ou quem era o então vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP), quando a conversa se tratava de arriscar uma possível linha sucessória presidencial. Outros não pareciam interessados na questão, apesar de demonstrarem incômodo com tudo que se passava.
Mantive o silêncio e continuei a observar as reações. Foi quando um dos clientes, demonstrando impaciência com a classe política que discursava (caricaturada a seu modo), sugeriu que se trocasse de canal e todos passaram a assistir o Programa Silvio Santos, do SBT. Tal cena lembrou-me a famosa frase de Aristides Lobo destacada por José Murilo de Carvalho (1987) e que poderíamos parafrasear do seguinte modo: “bestializados”, sem compreender o que se passava, as pessoas continuavam a degustar suas pizzas, sem imaginar o cenário que as aguardavam. Afinal, as divindades do capitalismo neoliberal não cessam de exigir sacrifícios individuais ou coletivos. O cutelo já foi levantado: quem será a próxima vítima?
  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo. Boitempo, 2007.
ALMEIDA, Ronaldo. “Os deuses do parlamento”. In. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo. Annabrume, 2002.
CAROZZI, Maria Julia (1994). “Tendências no estudo dos novos movimentos religiosos na América: os últimos 20 anos”. In: Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais da ANPOCS. Rio de Janeiro, n. 37, pp. 61-78.
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. C&A das Letras, 1987.
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo. Attar Editorial. 2002.
___________. “Religião, Estado, modernidade: notas a propósitos de fatos provisórios”. In. Estudos Avançados, 18 (52), 2004.
GIRARD, Renê. A violência e o sagrado. São Paulo. Paz e Terra, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Fé e saber. São Paulo. Unesp, 2013.
HIRSCHKIND, Charles. “Existe um corpo secular?”. In. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 37(1), 2017.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas”, In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. 2003.
MONTERO, Paula (2003). “Max Weber e os dilemas da secularização: o lugar das religiões no mundo contemporâneo”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 65, março de 2003, p. 34-44.
_________ (2009). “Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 84, julho de 2009, p. 119-213.
_________ (2012). “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. In: Religião e sociedade. Rio de Janeiro, 32 (1), p. 167-183.
ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. “A religião e a esfera pública”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 12, 2008.

Notas


[1] O processo de impeachment havia sido aceito com base no pedido do jurista Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e da advogada Janaina Pascoal, lido por Cunha em 03 de dezembro de 2015. O relatório da comissão, lido na sessão do dia 17 de abril pelo deputado e relator Jovair Arantes (PTB-GO), baseava-se no chamado “crime de responsabilidade”, que ficou conhecido como “pedaladas fiscais”.
[2] Ao analisar as disputas em torno da instituição do potlatch, Mauss afirma que no ritual assiste-se uma “luta dos nobres para assegurar entre eles uma hierarquia que ulteriormente beneficiará seu clã” (2003, p. 192).


*José Edilson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Sem cortina: sobre a perversa trama do machismo

Por Erineide Souza de Oliveira*

Estamos inseridos numa sociedade onde as desigualdades entre homens e mulheres são alarmantes, cuja necessidade de intervenção se faz urgente. É com o objetivo de propor uma reflexão conjunta sobre a condição da mulher em nossa sociedade, que os convido a ponderar sobre como o cenário atual é dramático para nós, mulheres.
Ainda estamos morrendo por conta de uma estrutura social e cultural que tenta nos aniquilar. Para melhorar esse cenário de desvantagem, é preciso, entre outras ações, de mudança de postura e do envolvimento de uma sociedade inteira. É urgente discutir igualdade de oportunidades e de direitos nas relações de gênero em que os homens nos impõem força de violência e matam mulheres em escala crescente.
Sabemos que há muitos homens sensíveis a essa realidade, que lutam conosco por uma sociedade mais justa, onde mulheres não sejam mais sujeitadas à violência de gênero. É inegável que há um padrão posto, numa sociedade em cujas veias está entranhada a ideia de que os homens são superiores às mulheres e se sentem no direito de  ter domínio e violar nossos corpos.
Todas as violências às quais somos expostas nos matam um pouco das mais variadas formas. Algumas vezes conseguimos renascer de todas as amarras que nos são impostas pelo patriarcado. Muitas mulheres não tiveram e não têm a mesma condição. Todos os dias mulheres morrem e outras se calam pra sempre. Algumas em suas casas e, infelizmente, centenas e centenas em seus túmulos.
Assim, todas nós morremos um pouco, pela sensação de vulnerabilidade que nos invade, por empatia e porque somos potenciais vítimas desse sistema excludente e dessa cultura de machismo que mata. É importante ressaltar que a luta das mulheres, entre outras necessidades, é pelo direito de fazermos escolhas, de andarmos em segurança, de sermos olhadas como seres que têm desejo, e que merecem viver em plenitude, sem sermos submetidas ao controle masculino.
É equivocada a especulação de que estamos disputando com os homens. Não queremos os lugares dos homens, apenas queremos lugares (também). Diante desse cenário, é preciso ponderar que a construção de uma sociedade saudável só será possível se todos nós estivermos abertos para mudanças necessárias.
É imperioso repensar nossa cultura e reposicionar os homens nas relações abusivas que estabeleceram e ainda estabelecem com as mulheres. Rever nossas posturas e os papeis impostos socialmente, para homens e mulheres, são necessários para dar lugar a uma nova cultura onde as expressões de masculinidade não sejam tão agressivas e danosas para as mulheres.


*Erineide Souza de Oliveira é Assistente Social, Poeta e Feminista. 

quinta-feira, 25 de julho de 2019

PARADIGMAS DO “SENTIDO DA COLONIZAÇÃO”: A formação econômica do Brasil a partir de Caio Prado Jr. e Fernando Novais

Por José Edilson Teles*

RESUMO

Este ensaio tem como objetivo fazer breves apontamentos e comparar dois modelos teóricos pioneiros na interpretação da história econômica brasileira, a saber, o “sentido da colonização” proposta por Caio Prado Jr., e a análise das condições da “vida privada” empreendida por Fernando Novais. O modelo pradiano é caracterizado por uma análise externa, isto é, a economia brasileira apresenta-se como condição periférica resultado de seu passado colonial, ao passo que o modelo novaliano investe numa análise das especificidades da formação do sistema econômico colonial e do Brasil contemporâneo, buscando manter suas individualidades e situações concretas. Nosso argumento é de que ambos os modelos, apesar de apresentarem diferentes interpretações do processo histórico, contribuíram para compreensão das características do sistema econômico colonial e do modo como o passado se reitera nas relações do Brasil contemporâneo. Defendemos, assim, uma complementaridade das contribuições teóricas.   

Palavras-chave: Caio Prado Jr., Fernando Novais, Sentido da colonização.  

Prelúdio: comparando modelos.

A comparação entre modelos teóricos, especialmente aqueles considerados pioneiros ou inovadores, exige maior fôlego do que poderíamos empreender aqui. Apesar da brevidade e do risco de reducionismo, nosso objetivo é compreender como dois modelos teóricos em ciências sociais – o primeiro elaborado por Caio Prado Jr. na década de 1940 (o “sentido da colonização”) e o segundo proposto por Fernando Novais na década de 1970 (“condições da vida privada na colônia”) – complementam-se na interpretação da formação econômica do Brasil contemporâneo. Embora alguns autores apontem uma “oposição” entre estes modelos, preferimos compreender como uma “oposição complementar”, visto que a superação de um não implica na exclusão do outro. É nesse sentido que Fernando Novais retoma o tema clássico aberto por Caio Prado Jr. e acrescenta-lhe novos elementos.
O objetivo central de nosso ensaio é demonstrar como ambos os autores buscam responder um problema comum, a saber, as características do sistema econômico colonial e de que modo esse passado explica as relações das econômicas do Brasil contemporâneo. Com Caio Prado Jr. veremos como o presente é carregado pelos “sentidos” que moldaram as relações do passado colonial; com Fernando Novais, daremos um passo além, e verificaremos que apesar do Brasil contemporâneo reiterar seu passado no presente, deve-se considerar as individualidades de cada situação histórica e suas especificidades.
Desse modo, se por um lado, a colônia é vista como uma extensão do mercantilismo europeu (português) e que esta marca determina sua condição periférica ainda verificada no século XIX (Prado Jr.); por outro, a passagem do sistema feudal para sistema capitalista, quando analisadas em suas especificidades, sugerem novos elementos que a leitura fatalista não dava conta (Novais). De fato, o passado se reitera nas relações do presente, mas ganha novas dinâmicas. Tentaremos discutir como estes autores apresentaram estas questões.     

Interlúdio: a formação econômica do Brasil sob dois olhares.

A formação da sociedade brasileira, bem como o desenvolvimento de suas condições econômicas, suscitou uma série de debates e paradigmas interpretativos, cujo objetivo era caracterizar as especificidades deste fenômeno histórico e social. Na tentativa de compreender as condições históricas que gestaram a economia brasileira no presente, tida como periférica em relação aos países desenvolvidos, cientistas sociais voltaram-se para o passado colonial com o objetivo de buscar elementos históricos que apontariam para as dificuldades que a nação brasileira teria para desenvolver-se. Tais paradigmas, que de modo geral pode ser interpretados como complementares – apesar das críticas entre si – buscavam responder um problema em comum: quais as características ou especificidades da economia desenvolvida no sistema colonial português e em que medida estas relações ainda se impõe nas relações atuais. Ou seja, historiografia se dedicou a produzir modelos interpretativos que dessem conta de explicar as relações entre passado e presente.     
O objetivo deste ensaio é fazer breves apontamentos acerca de dois dos principais modelos teóricos em ciências sociais que se propuseram a responder estas questões, vistos por um lado como complementares e ao mesmo tempo como estando em oposição entre si. Trata-se da interpretação elaborada na década de 1940 por Caio Prado Jr. (1981) e retomada num segundo momento por Fernando Novais (1974). Para ambos os autores, o surgimento da sociedade brasileira no século XVI, isto é, o empreendimento colonial é um prolongamento ou expansão do mercantilismo europeu. No que diz respeito ao desenvolvimento dos sistemas econômicos europeus, a colônia é uma expansão das condições históricas e da concorrência europeia.
Na abordagem de Caio Prado Jr., a economia brasileira ocupa uma condição periférica, cujo “sentido” é encontrado em seu passado colonial. Na avaliação de Nilo Odália, a abordagem pradiana é classificada como uma “perspectiva romântico-historicista”, pois seu esforço está todo voltado para “localizar e determinar as origens do presente, na pressuposição de que uma vez identificadas basta acompanhar o desenvolvimento histórico de suas linhas para se ter seu quadro lógico e acabado” (1974, p. 53). O argumento de Caio Prado Jr., cuja influencia teórica é derivada de Karl Marx, é que “todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’. Este se percebe não nos pormenores da sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num longo período de tempo” (PRADO Jr. 1981, p. 13). Desse modo, em Prado Jr., a noção de “sentido de colonização” é elaborada como conceito chave para explicar o fundamento e a origem da sociedade brasileira como tendo sido moldada pelo seu passado colonial. Em outros termos, a resposta de Prado Jr. é que o capitalismo brasileiro é herdeiro de suas marcas do passado, que consistia em produzir para fora e, portanto, explicaria sua condição periférica dominada por fatores externos.                     
A crítica dirigida ao modelo interpretativo pradiano, geralmente aponta para este aspecto: Prado Jr. não teria dado a devida atenção para as condições específicas (internas) da colônia, isto é, seu olhar estava voltado para uma análise do sistema econômico externo. Uma destas críticas é do próprio Nilo Odália, que chama atenção para o aspecto “fatalista” desta interpretação, que concluiria que o “Brasil do século XIX não poderia ser outra coisa do que foi” (1974, p. 54). Entretanto, não há duvidas de que a contribuição de Prado Jr. foi recolocar o tema das relações econômicas para o campo da dinâmica história e social em contraposição aos economistas de sua época que tendiam a transforma-la numa ciência especulativa sem relação com as condições concretas da história.      
Na tentativa de superar estes problemas teóricos, Fernando Novais (1974, 1998) investiu numa interpretação das condições internas ou “privadas” da formação da sociedade e economia colonial e sua transição para o capitalismo. Apesar de o empreendimento colonial ser uma extensão dos negócios mercantilistas europeus, seu desenvolvimento deveria ser compreendido na dimensão de sua especificidade dentro desse contexto geral. Sua análise busca “desvendar” a estrutura geral do universo colonial, iluminando novas questões sobre a formação econômico-social e sua relação com os modos de produção, especialmente o trabalho escravo. De modo geral, sua intenção era compreender a transição do feudalismo para o capitalismo.
Na abordagem de Novais, a especificidade da colônia é colocada em outros termos: enquanto a metrópole portuguesa, que passava por um processo de modernização construía a separação das esferas públicas e privadas, na colônia estas esferas manifestavam-se de modo “ambíguas”. Para Novais, reconstituir os modos de vida na colônia, inclusive as relações econômicas, implicam em considerar que estas esferas não estavam indistintas, mas também não estavam separadas; estavam “imbricadas”. Portanto, sua análise considera os modos peculiares da colônia de desenvolver e integrar-se naquele universo.
As principais características da vida na colônia, segundo a abordagem de Novais, era a mobilidade, a dispersão e a instabilidade. Estas características são explicadas por dois extremos: por um lado, o nordeste açucareiro, centro do sistema econômico, voltado para atender as demandas externas; neste caso, havia uma relação com a estabilidade, pois o povoamento e os modos de produção tendiam a permanecer e se sedimentar num lugar. Por outro lado, na periferia deste sistema central, o povoamento era marcado por uma mobilidade e instabilidade (caso de São Paulo e região); a economia era de subsistência e produzida para dentro (NOVAIS, 1998, p. 25).                  
Entre estas características, a organização do trabalho consistia em sua base de desenvolvimento econômico, apesar de apresentarem-se como “contraditórias”. Na avaliação de Novais, “enquanto na Europa se transita da servidão feudal para o salariato através do trabalho independente de camponeses e artesãos, no mundo colonial acentuava-se a dominância do trabalho compulsório, e no limite, a escravidão” (1998, p. 33).
Na análise de Novais, a transição do feudalismo para o capitalismo deveria considerar estes diversos caminhos, ao invés de se pensar num fatalismo de caminho único. Ao desmontar o mecanismo do antigo sistema colonial, Novais demonstra como o sistema colonial se adequava perfeitamente ao papel que dele se esperava. Nisso há diferenças com Caio Prado Jr. Enquanto em Prado Jr. a condição periférica da economia brasileira no século XIX é um ponto de chegada como consequência do passado colonial (olhar externo), para Novais, ao olhar para as condições da vida privada na colônia portuguesa e se desenvolvimento na sociedade brasileira, busca manter suas individualidades históricas.             
Segundo Odália, o equivoco do pradiano consistia em consistia em “atribuir ao capital comercial uma posição extremamente determinante ainda no século XIX brasileiro” (1974, 53), pois implicaria em negar a individualidade de diferentes momentos históricos.

Poslúdio: contribuições dos modelos teóricos.

            Do que discutimos até aqui, podemos resumir como segue: Caio Prado Jr. buscou reconduzir os debates sobre a formação econômica do Brasil para sua dimensão histórica, com base no método dialético marxista. Neste caso, foi o primeiro acadêmico brasileiro a usar a teoria marxista para interpretação do fenômeno histórico e social, atribuindo uma carga de “sentidos” presentes na formação da sociedade brasileira explicado por seu passado colonial. Prado Jr., ao utilizar este instrumento teórico, tenta explicar o presente como continuação das condições passado. O “sentido” do que somos está em outro lugar: a colônia é apenas uma extensão comercial e ainda teríamos marcas desta dependência.
            Na leitura de Fernando Novais, o “sentido da colonização” deve ser explicado por cada situação concreta, levando em conta as individualidades de cada momento histórico, ou seja, sua gênese, seu desenvolvimento e sua decadência. Apesar de o passado colonial fazer-se presente no Brasil contemporâneo, não devemos buscar uma causalidade fatalista, mas observar a especificidade de cada situação.       
Apesar de alguns autores, como Nilo Odália, encontrarem mais oposição que complementaridade entre as abordagens de Caio Prado Jr. e Fernando Novais, podemos afirmar que ambos, contribuíram para uma melhor compreensão da complexa formação da história economia brasileira. Nesse sentido, as oposições complementam-se na abertura de novos caminhos interpretativos. 

Referencias bibliográficas


NOVAIS, Fernando A. (1974). “Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial”. In: Cadernos Cebrap. São Paulo.
___________ (1998). “Condições da privacidade na colônia”. In: História da vida privada no Brasil. Vol. 1. São Paulo, Cia das Letras.
ODÁLIA, Nilo (1974). “Sentido de colonização, modo de produção e história colonial”. In: Debate e Crítica, n. 4. Revista quadrimestral de Ciências Sociais, novembro de 1974.  
PRADO Jr., Caio (1981). Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo. Brasiliense.

* José Edilson Teles, graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Uma infância sem criança: danos da invisibilidade


Por Erineide Souza de Oliveira*


E há que se cuidar do broto,
pra que a vida nos dê flor e fruto
Milton Nascimento

Pensar a infância num país onde 190 mil crianças entre 5 e 13 anos são usadas como mão de obra explorada[1] é pensar sobre o lugar que a infância ocupa nessa sociedade assentada nos ideais capitalistas.
Historicamente, as crianças não são olhadas de forma justa e digna. Na Idade Média, não era dispensado às crianças afeto e cuidados necessários ao seu desenvolvimento saudável, resultando em um sem número de mortes infantis e desproteção dessa faixa etária, como discorre Juliana Linhares:

A vida era vista de forma homogênea, não havia diferenciação entre os períodos da vida. Durante a idade média, crianças e adultos eram tratados como iguais socialmente, facilitando a exploração, e maus tratos (2016, p. 23).

Se refletirmos acerca do silenciamento histórico da infância e sobre o descrédito aplicado às crianças nos depararemos com o apagamento da infância que, no Brasil, apenas tomou lugar de direito com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990.
Claro que a lei, por si, não oferece garantias de proteção e protagonismo. Ainda hoje é possível constatar os problemas advindos de um histórico penoso que circunda o universo da infância e suas profundas marcas sociais. Como aponta Philippe Ariès:

A criança então, mal adquiria algum desembaraço fisico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje (1986, p. 3).

Não serem olhadas e protegidas pelo Estado e pelos responsáveis lança as crianças numa experiência de abandono, que possivelmente acarretará prejuízos em seu desenvolvimento.
Em diversas áreas a infância tem direitos violados, sendo que os adultos não estão sensíveis a olhar para essas questões de forma justa, considerando as peculiaridades das crianças. Diante de todas as desproteções sabidas encontra-se num bojo danoso a exploração sexual e o trabalho infantil de crianças e adolescentes.
Frente a esse cenário é possível inferir que há profundas influências do capitalismo em nossa vida prática, vez que resta evidente que todos os corpos devem estar aptos a produzir, não sendo consideradas suas condições físicas, ainda que seja trabalho oriundo de exploração, especialmente nas famílias atingidas pela desigualdade imposta pelas perversidades do sistema capitalista. Conforme dispõe Hogemann:

As políticas sociais brasileiras têm história recente. Com a feição de políticas públicas destinadas à garantia e promoção de direitos básicos negados pelo capitalismo à maioria pobre, esta prática tem configuração muito atual (2012, p. 3).

A exposição de crianças ao trabalho indevido e criminoso tem raízes fincadas na negação de direitos e na invisibilização das pessoas em processo de desenvolvimento, como se essa fase não fosse determinante para se transformar em adultos produtivos.
Explorar a mão de obra de corpos infantis expõe uma questão fundante: a desproteção da infância se desvela em nosso cotidiano como um facão que corta futuro. Os dados alarmantes de exploração deram origem a políticas públicas que objetivam ao combate desse mal que assola a infância. Contudo, as políticas ainda não se configuram suficientes para a efetividade dos objetivos.
No dia 12 do mês de junho destaca-se o dia mundial de combate ao trabalho infantil, em cujas veias residem infâncias roubadas. De acordo com as Convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho) nº 138  e nº 182:

A)   É considerado trabalho infantil o trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima de admissão ao emprego/trabalho estabelecida no país;
B)   Os trabalhos perigosos são considerados como piores formas de trabalho infantil e não devem ser realizados por crianças e adolescentes abaixo de 18 anos. Caracteriza-se como trabalho perigoso as atividades que por sua natureza, ou pelas condições em que se realizam, colocam em perigo o bem-estar físico, mental ou moral da criança. Essas atividades devem ser estabelecidas por cada país;
C)   Também são consideradas como piores formas de trabalho infantil a escravidão, o tráfico de pessoas, o trabalho forçado e a utilização de crianças e adolescentes em conflitos armados, exploração sexual e tráfico de drogas.
Segundo a OIT, o Brasil não cumpriu o compromisso da Convenção 182 de erradicar todas as piores formas de trabalho infantil até 2016. O compromisso foi revisto e a meta agora é de erradicar todas as formas da prática até 2025, conforme preveem os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.[2]
O combate à exposição das crianças ao trabalho passa também pela necessidade do Estado voltar a atenção para a inclusão universal das crianças em unidades escolares e se ocupar da oferta de educação de qualidade, e da ampliação das políticas de assistência social e saúde.
Perceber a infância inserida num mundo capitalista, cujas faces perversas não dão lugar digno e justo à infância, é pensar em o quão mergulhado estamos num sistema que não respeita nada além de seus objetivos danosos e explora pessoas de forma letal.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, dispõe em seu artigo 4º que "é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta propriedade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

Isso demanda de todos nós a responsabilidade acerca da proteção das crianças. É urgente que todos nós nos apliquemos nessa necessidade de garantir à infância um desenvolvimento saudável e digno, respeitando-se as suas necessidade específicas. 









* Erineide Souza de Oliveira é Assistente Social, Poeta e Feminista.

Referências bibliográficas:


LINHARES, J. M. História Social da Infância. 1ª ed. Sobral, 2016.
ARIES, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Guanabara, 1986.
RIZZINI, I. Et al. Criança não é Risco, é Oportunidade. EDUSU-Editora Universitária Santa Úrsula, 2000.
HOGEMANN, E. R. A infância Pobre, a Estigmatização Objetificada, a lei, a Filantropia e a Caridade como Enfrentamento de uma Realidade Dissimulada Histórica e Socialmente. Trabalho apresentado in: XXI Encontro Nacional CONPEDI/Universidade Federal de Uberlândia, 2012.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF.

Notas:


[1] Dados extraídos de www.ibge/pnad. PNAD Contínua 2016: Brasil tem, pelo menos, 998 mil crianças  trabalhando em desacordo com a legislação. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/18383-pnad-continua-2016-brasil-tem-pelo-menos-998-mil-criancas-trabalhando-em-desacordo-com-a-legislacao>  Acesso em: 20 maio/2019.
[2] Dados da Organização Internacional do Trabalho, disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-infantil/lang--pt/index.htm. Acesso em 20 de maio/2019.