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quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sobre despir-se dos privilégios: uma breve reflexão acerca do racismo estrutural



Por José Edilson Teles*

A população brasileira percebe a existência do racismo, falta o passo seguinte que é reconhecer a necessidade de combatê-lo.
Sérgio COSTA, Dois atlânticos, 2006, p. 218. 


Prólogo: sobre despir-se dos privilégios
É impossível assistir o documentário Eu não sou seu negro (2016), de Raoul Peck, e não experimentar um conjunto de sensações incômodas, uma espécie de vergonha (alheia) pela condição humana. Baseado no livro inacabado do escritor afro-americano James Baldwin – cuja narrativa entrelaça as trajetórias de Martin Luther King Jr. e Malcon-X, figuras emblemáticas na luta contra o racismo nos Estados Unidos –, o documentário atinge seu objetivo ao provocar o público a pensar acerca do problema em torno das relações raciais. A estratégia narrativa, construída pela combinação de imagens e trilha sonora (interrompida às vezes por um breve silêncio proposital, talvez para suscitar a reflexão), produz uma sensação de deslocamento que nos permite repensar uma série de situações consideradas “naturais”, imperceptíveis inclusive pelas próprias vítimas do racismo.
Ao assisti-lo, é impossível não se perguntar pelos modos de reprodução de atitudes racistas, mesmo por parte daqueles que se julgam isentos de responsabilidade. A fim de problematizar as questões levantadas pelo documentário de Peck, o presente ensaio tem como objetivo contribuir para o debate que trata do combate ao racismo, especialmente no contexto das relações raciais no Brasil, realidade que nos toca diretamente. Nesse sentido, tentarei articular dois problemas históricos que nos permitem situar os ecos do racismo no século XXI: em primeiro lugar, farei uma breve incursão pelas origens do conceito de “raça” e suas implicações políticas e sociais na construção do imaginário de identidade nacional; no segundo momento tratarei de demostrar que o combate ao racismo depende de uma postura engajada politicamente, cuja crítica consiste identificar o racismo como um problema sistêmico e estrutural – e não apenas de indivíduos. Assim, teremos condições de perceber que não basta não ser racista, misógino ou homofóbico: é preciso engajar-se numa luta, começando por reconhecer alguns privilégios.    

Mapeando um debate: o conceito de “raça” e o racismo científico
A construção do conceito de “raça” e suas implicações para as relações raciais no Brasil podem ser situadas historicamente. Os intelectuais brasileiros que trataram da ideia de identidade nacional, entre os séculos XIX e XX, tiveram que se debruçar sobre o “problema” da miscigenação a fim de propor uma solução por meio de um projeto político de “saúde” nacional, uma espécie de projeto higienizador. Em Dois atlânticos (2006), Sérgio Costa procura situar os fundamentos epistemológicos desse projeto a partir do conceito de “raça” que, tomada em seu sentido biológico, constituiria o chamado “racismo científico”. Conforme Costa, “buscava-se no reino natural as explicações para as diferentes hierarquias sociais” (p. 206). Logo, legislando em causa própria, não seria difícil para os europeus dizerem quem estaria no topo da hierarquia.
De modo específico, na década de 1930, o racismo científico brasileiro procurava importar ideias europeias acerca das determinações biológicas sobre as capacidades pessoais e raciais. Entretanto, o fenômeno da miscigenação, tida como a principal característica da formação da sociedade brasileira, apresentava uma experiência diferente da situação europeia, fato que exigia uma adaptação da teoria racista. Pressupondo a superioridade da raça branca sobre as demais, essa teoria racista tornou-se a base para a construção de um projeto de nação.
Segundo Costa, ao menos duas correntes divergiam no interior do racismo científico quanto aos “riscos da miscigenação” (p. 166). Por um lado, os mais “pessimistas” defendiam a tese de que a mistura das raças levaria ao “perigo” da degeneração e à impossibilidade da constituição de um projeto de nação civilizada – ou “curada”. Nina Rodrigues, por exemplo, consta entre os intelectuais dessa corrente e, conforme Wagner Gonçalves da Silva, seus estudos sobre as práticas religiosas do candomblé, “serviam para demonstrar a incapacidade mental dos negros africanos para as elevadas abstrações do monoteísmo” (1991, p. 51). A segunda corrente, representada por uma ala mais “otimista” (mas não menos problemática), sustentava a ideia de que o próprio fenômeno de miscigenação se encarregaria, por meio de uma seleção natural, do processo de “branqueamento” do Brasil, isto é, do desaparecimento progressivo dos negros e mestiços. Essas teorias racistas perderam progressivamente seu lugar nas explicações sociológicas, embora os ecos de seus pressupostos permaneçam presentes nos substratos da formação do imaginário nacional brasileiro. É isso que chamamos de racismo sistêmico e estrutural, visto que se expressam nas instituições e nas relações sociais.

Raízes do Brasil: sobre o racismo sistêmico e estrutural
As explicações biológicas para o fenômeno da miscigenação deram lugar a explicações sociológicas. Entre os autores que enfrentaram os desafios de produzir uma nova interpretação das relações sociais no Brasil, destacam-se Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Oracy Nogueira. A seu modo, cada um procurou contribuir para o debate em torno da ideia de “identidade nacional” que permite, nas estrelinhas, identificar as peculiaridades da formação brasileira e a estruturação das relações raciais.
Em Casa-grande & Senzala, G. Freyre (2006), dedica-se a descrever a formação da família brasileira a partir dos traços da economia patriarcal. De modo específico, Freyre propõe-se a tratar dos “problemas brasileiros” a partir de um eixo de relações estabelecidas pelo fenômeno da miscigenação (p. 31), que segundo Freyre, corrigia a “distancia social” entre a “casa-grande e a senzala” (p. 33). Em decorrência desse posicionamento, Freyre insistia no argumento de que a miscigenação, ao contrário do modelo de segregação – tal como se verifica na experiência norte-americana tratada no documentário Eu não sou seu negro –, produzia uma espécie de “harmonia” das raças, servindo, portanto, como uma espécie de “laboratório” para compreender as relações raciais em outros contextos. Além disso, no que diz respeito às “etiquetas” que constituem as relações sociais no Brasil, Freyre argumenta que “a história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro” (p. 44), um elemento cultural por meio do qual se exprime “o caráter brasileiro” (p. 45).
Nesse sentido, é compreensível, embora não justificável, o argumento de Freyre segundo a qual o fenômeno da miscigenação teria “adocicado” as relações entre senhores e escravos, entre a casa-grande e a senzala. Entretanto, a narrativa mítica da “harmonia das raças” produziu uma modalidade difusa de denegação do preconceito racial (a famosa frase “não sou racista, mas...”) em detrimento das práticas cotidianas que insistiam em exprimir o contrário. Nesse sentido, a família constitui-se em um dos principais elementos “ponderadores” das relações sociais no Brasil: o encontro sexual “híbrido” soma-se ao oligarquismo político (mandonismo) e ao patriarcalismo econômico (agrário) na constituição de “harmonia racial”. Portanto, o argumento central de Freyre é que “a formação brasileira te sido um processo de equilíbrio de antagonismos” (p. 116).
Assim como Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1995), também destaca o fato de que os portugueses não nutriam orgulho de raça, elemento que os colocavam em vantagens em relação ao “separatismo” político e religioso que marcavam as mentalidades de outros colonizadores europeus. Entretanto, apesar da “frouxidão da estrutura social” que impossibilitava uma “hierarquia organizada” (p. 33), isso não significa que lógicas hierárquicas estivessem ausentes do conjunto de relações sociais estabelecidas na colônia. Pelo contrário, os “elementos anárquicos” que se constituíram com a cumplicidade das instituições fundavam-se, segundo Holanda, em “privilégios” (p. 35). Ditos de outro modo, as relações sociais estabelecidas no Brasil, desde sua formação, não encontraram bases na clássica distinção ibérica entre o público e privado.
Como podemos observar, análise de Holanda consiste em contrastar a mentalidade ibérica, tida como tipo ideal da racionalização e a peculiaridade da constituição da mentalidade luso-brasileira, marcada pelas relações personalistas. Segundo Holanda, o “peculiar da vida brasileira” seria acentuado de modo “enérgico” pelas características afetivas, irracionais e passionais, em oposição às qualidades correspondentes a ordem, a disciplina e a razão (p. 61). Esses pares binários também aparecem nos contrastes entre o “semeador” e o “ladrilhador”, o primeiro representando a ausência de uma lógica comercial e o segundo expressando a lógica do cálculo e as estratégias de organização.
Quanto a Oracy Nogueira, suas análises sobre o preconceito racial de marca no Brasil em contraste com o preconceito racial de origem no contexto norte-americano, permitem-nos visualizar as complexidades das relações sociais na sociedade brasileira. Em Tanto preto quanto branco (1985 [1954]), Nogueira problematiza as temáticas clássicas que tratam das relações raciais e propõe uma nova perspectiva no tratamento da questão. Nesse caso, a experiência americana serve como uma espécie de “espelho” para compreensão da situação brasileira.
No caso do Brasil, a configuração da gramática do preconceito de marca ou de cor ganha contornos sofisticados no cotidiano ao reproduzir (conscientemente ou não) estigmas associados às características fenotípicas. Nesse sentido, Nogueira ainda chama atenção para o fato de que o problema das relações sociais no Brasil é, antes de tudo, o preconceito de marca, segundo a qual “o negro ou a pessoa escura sempre luta com desvantagem” (p. 79). Conforme Nogueira, o fenômeno da miscigenação e sua interpretação produziram uma espécie de “mito” capaz de conformar a ideia de harmonia racial. Por vezes, a diferenciação no trato dispensado no cotidiano às pessoas de cor, processa-se de modo a mascarar as práticas. A sofisticação é tal que mesmo a vítima do preconceito racial, em algumas circunstâncias, não se dá conta do aspecto velado da situação. Além disso, o problema também se estende para as esferas institucionais que “filtram” de modo sofisticado, por uma variedade de estratégias, os indivíduos que possuam algum tipo de característica “indesejada”.

Epílogo: por um projeto anti-racista interseccional
Esse breve ensaio, inspirado no documentário Não sou seu negro, procurou apresentar as sutilezas do racismo estrutural no contexto das relações raciais no Brasil. Assim, ao longo da formação da sociedade brasileira, e em pleno o século XXI, é possível encontrar ecos das explicações pretensamente “científicas” dos séculos XIX e XX presentes no imaginário da identidade nacional, consolidada na versão do mito das “três raças” harmônicas. Além disso, o racismo estrutural conta com um poderoso instrumento de reprodução ideológica, a saber, o sistema educacional, tornando possível a construção do que Benedict Anderson chamou de “profunda camaradagem horizontal” (2008 p. 34) entre aqueles que partilham dos valores considerados essenciais para o coletivo.
Nesse sentido, o debate contemporâneo chama atenção para o fato de que as estratégias anti-racistas precisam articular a questão da raça, classe e gênero como um projeto de luta interseccional. Uma vez que o racismo estrutural dispõe de uma linguagem global (porque foi construída para ser “naturalizada”), como é o caso dos defensores da supremacia branca, é preciso que suas implicações sejam pensadas em múltiplas escalas. Um projeto anti-racista precisa dar-se conta dos diferentes tipos de opressão e combatê-los em conjunto (se possível, com tecnologias análogas). Do ponto de vista da ação política, isso implicaria a necessidade de atuação por meio de política de ação afirmativa, por meio de mecanismos eficientes de criminalização do racismo e por meio da norma universal de oportunidade. Por fim, se o racismo é uma realidade incontestável, estrutural e institucionalizado, é preciso criar a necessidade de combatê-lo, pois, como diria Audre Lorde, “não há hierarquias de opressão” (2009). E os que desejam combatê-lo de modo eficaz, apesar dos resultados não serem imediatos, não basta afirmarem que não são racistas, é precisam começar por despirem-se seus privilégios.    

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Cia das Letras: 2008.
COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: Teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG/Humanitas, 2006.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: a formação da família sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
LORDE, Audre. “Não há hierarquias de opressão”. In: Textos escolhidos, 2009.
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo. T.A Queiroz, 1985 [1954].
SILVA, Vagner Gonçalves da. “A crítica antropológica pós-moderna e a construção textual da etnografia religiosa afro brasileira”. In. Cadernos de Campo, Ano 1, N. 1, 1991. 


*José Edilson Teles, é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).