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quinta-feira, 25 de julho de 2019

PARADIGMAS DO “SENTIDO DA COLONIZAÇÃO”: A formação econômica do Brasil a partir de Caio Prado Jr. e Fernando Novais

Por José Edilson Teles*

RESUMO

Este ensaio tem como objetivo fazer breves apontamentos e comparar dois modelos teóricos pioneiros na interpretação da história econômica brasileira, a saber, o “sentido da colonização” proposta por Caio Prado Jr., e a análise das condições da “vida privada” empreendida por Fernando Novais. O modelo pradiano é caracterizado por uma análise externa, isto é, a economia brasileira apresenta-se como condição periférica resultado de seu passado colonial, ao passo que o modelo novaliano investe numa análise das especificidades da formação do sistema econômico colonial e do Brasil contemporâneo, buscando manter suas individualidades e situações concretas. Nosso argumento é de que ambos os modelos, apesar de apresentarem diferentes interpretações do processo histórico, contribuíram para compreensão das características do sistema econômico colonial e do modo como o passado se reitera nas relações do Brasil contemporâneo. Defendemos, assim, uma complementaridade das contribuições teóricas.   

Palavras-chave: Caio Prado Jr., Fernando Novais, Sentido da colonização.  

Prelúdio: comparando modelos.

A comparação entre modelos teóricos, especialmente aqueles considerados pioneiros ou inovadores, exige maior fôlego do que poderíamos empreender aqui. Apesar da brevidade e do risco de reducionismo, nosso objetivo é compreender como dois modelos teóricos em ciências sociais – o primeiro elaborado por Caio Prado Jr. na década de 1940 (o “sentido da colonização”) e o segundo proposto por Fernando Novais na década de 1970 (“condições da vida privada na colônia”) – complementam-se na interpretação da formação econômica do Brasil contemporâneo. Embora alguns autores apontem uma “oposição” entre estes modelos, preferimos compreender como uma “oposição complementar”, visto que a superação de um não implica na exclusão do outro. É nesse sentido que Fernando Novais retoma o tema clássico aberto por Caio Prado Jr. e acrescenta-lhe novos elementos.
O objetivo central de nosso ensaio é demonstrar como ambos os autores buscam responder um problema comum, a saber, as características do sistema econômico colonial e de que modo esse passado explica as relações das econômicas do Brasil contemporâneo. Com Caio Prado Jr. veremos como o presente é carregado pelos “sentidos” que moldaram as relações do passado colonial; com Fernando Novais, daremos um passo além, e verificaremos que apesar do Brasil contemporâneo reiterar seu passado no presente, deve-se considerar as individualidades de cada situação histórica e suas especificidades.
Desse modo, se por um lado, a colônia é vista como uma extensão do mercantilismo europeu (português) e que esta marca determina sua condição periférica ainda verificada no século XIX (Prado Jr.); por outro, a passagem do sistema feudal para sistema capitalista, quando analisadas em suas especificidades, sugerem novos elementos que a leitura fatalista não dava conta (Novais). De fato, o passado se reitera nas relações do presente, mas ganha novas dinâmicas. Tentaremos discutir como estes autores apresentaram estas questões.     

Interlúdio: a formação econômica do Brasil sob dois olhares.

A formação da sociedade brasileira, bem como o desenvolvimento de suas condições econômicas, suscitou uma série de debates e paradigmas interpretativos, cujo objetivo era caracterizar as especificidades deste fenômeno histórico e social. Na tentativa de compreender as condições históricas que gestaram a economia brasileira no presente, tida como periférica em relação aos países desenvolvidos, cientistas sociais voltaram-se para o passado colonial com o objetivo de buscar elementos históricos que apontariam para as dificuldades que a nação brasileira teria para desenvolver-se. Tais paradigmas, que de modo geral pode ser interpretados como complementares – apesar das críticas entre si – buscavam responder um problema em comum: quais as características ou especificidades da economia desenvolvida no sistema colonial português e em que medida estas relações ainda se impõe nas relações atuais. Ou seja, historiografia se dedicou a produzir modelos interpretativos que dessem conta de explicar as relações entre passado e presente.     
O objetivo deste ensaio é fazer breves apontamentos acerca de dois dos principais modelos teóricos em ciências sociais que se propuseram a responder estas questões, vistos por um lado como complementares e ao mesmo tempo como estando em oposição entre si. Trata-se da interpretação elaborada na década de 1940 por Caio Prado Jr. (1981) e retomada num segundo momento por Fernando Novais (1974). Para ambos os autores, o surgimento da sociedade brasileira no século XVI, isto é, o empreendimento colonial é um prolongamento ou expansão do mercantilismo europeu. No que diz respeito ao desenvolvimento dos sistemas econômicos europeus, a colônia é uma expansão das condições históricas e da concorrência europeia.
Na abordagem de Caio Prado Jr., a economia brasileira ocupa uma condição periférica, cujo “sentido” é encontrado em seu passado colonial. Na avaliação de Nilo Odália, a abordagem pradiana é classificada como uma “perspectiva romântico-historicista”, pois seu esforço está todo voltado para “localizar e determinar as origens do presente, na pressuposição de que uma vez identificadas basta acompanhar o desenvolvimento histórico de suas linhas para se ter seu quadro lógico e acabado” (1974, p. 53). O argumento de Caio Prado Jr., cuja influencia teórica é derivada de Karl Marx, é que “todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’. Este se percebe não nos pormenores da sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num longo período de tempo” (PRADO Jr. 1981, p. 13). Desse modo, em Prado Jr., a noção de “sentido de colonização” é elaborada como conceito chave para explicar o fundamento e a origem da sociedade brasileira como tendo sido moldada pelo seu passado colonial. Em outros termos, a resposta de Prado Jr. é que o capitalismo brasileiro é herdeiro de suas marcas do passado, que consistia em produzir para fora e, portanto, explicaria sua condição periférica dominada por fatores externos.                     
A crítica dirigida ao modelo interpretativo pradiano, geralmente aponta para este aspecto: Prado Jr. não teria dado a devida atenção para as condições específicas (internas) da colônia, isto é, seu olhar estava voltado para uma análise do sistema econômico externo. Uma destas críticas é do próprio Nilo Odália, que chama atenção para o aspecto “fatalista” desta interpretação, que concluiria que o “Brasil do século XIX não poderia ser outra coisa do que foi” (1974, p. 54). Entretanto, não há duvidas de que a contribuição de Prado Jr. foi recolocar o tema das relações econômicas para o campo da dinâmica história e social em contraposição aos economistas de sua época que tendiam a transforma-la numa ciência especulativa sem relação com as condições concretas da história.      
Na tentativa de superar estes problemas teóricos, Fernando Novais (1974, 1998) investiu numa interpretação das condições internas ou “privadas” da formação da sociedade e economia colonial e sua transição para o capitalismo. Apesar de o empreendimento colonial ser uma extensão dos negócios mercantilistas europeus, seu desenvolvimento deveria ser compreendido na dimensão de sua especificidade dentro desse contexto geral. Sua análise busca “desvendar” a estrutura geral do universo colonial, iluminando novas questões sobre a formação econômico-social e sua relação com os modos de produção, especialmente o trabalho escravo. De modo geral, sua intenção era compreender a transição do feudalismo para o capitalismo.
Na abordagem de Novais, a especificidade da colônia é colocada em outros termos: enquanto a metrópole portuguesa, que passava por um processo de modernização construía a separação das esferas públicas e privadas, na colônia estas esferas manifestavam-se de modo “ambíguas”. Para Novais, reconstituir os modos de vida na colônia, inclusive as relações econômicas, implicam em considerar que estas esferas não estavam indistintas, mas também não estavam separadas; estavam “imbricadas”. Portanto, sua análise considera os modos peculiares da colônia de desenvolver e integrar-se naquele universo.
As principais características da vida na colônia, segundo a abordagem de Novais, era a mobilidade, a dispersão e a instabilidade. Estas características são explicadas por dois extremos: por um lado, o nordeste açucareiro, centro do sistema econômico, voltado para atender as demandas externas; neste caso, havia uma relação com a estabilidade, pois o povoamento e os modos de produção tendiam a permanecer e se sedimentar num lugar. Por outro lado, na periferia deste sistema central, o povoamento era marcado por uma mobilidade e instabilidade (caso de São Paulo e região); a economia era de subsistência e produzida para dentro (NOVAIS, 1998, p. 25).                  
Entre estas características, a organização do trabalho consistia em sua base de desenvolvimento econômico, apesar de apresentarem-se como “contraditórias”. Na avaliação de Novais, “enquanto na Europa se transita da servidão feudal para o salariato através do trabalho independente de camponeses e artesãos, no mundo colonial acentuava-se a dominância do trabalho compulsório, e no limite, a escravidão” (1998, p. 33).
Na análise de Novais, a transição do feudalismo para o capitalismo deveria considerar estes diversos caminhos, ao invés de se pensar num fatalismo de caminho único. Ao desmontar o mecanismo do antigo sistema colonial, Novais demonstra como o sistema colonial se adequava perfeitamente ao papel que dele se esperava. Nisso há diferenças com Caio Prado Jr. Enquanto em Prado Jr. a condição periférica da economia brasileira no século XIX é um ponto de chegada como consequência do passado colonial (olhar externo), para Novais, ao olhar para as condições da vida privada na colônia portuguesa e se desenvolvimento na sociedade brasileira, busca manter suas individualidades históricas.             
Segundo Odália, o equivoco do pradiano consistia em consistia em “atribuir ao capital comercial uma posição extremamente determinante ainda no século XIX brasileiro” (1974, 53), pois implicaria em negar a individualidade de diferentes momentos históricos.

Poslúdio: contribuições dos modelos teóricos.

            Do que discutimos até aqui, podemos resumir como segue: Caio Prado Jr. buscou reconduzir os debates sobre a formação econômica do Brasil para sua dimensão histórica, com base no método dialético marxista. Neste caso, foi o primeiro acadêmico brasileiro a usar a teoria marxista para interpretação do fenômeno histórico e social, atribuindo uma carga de “sentidos” presentes na formação da sociedade brasileira explicado por seu passado colonial. Prado Jr., ao utilizar este instrumento teórico, tenta explicar o presente como continuação das condições passado. O “sentido” do que somos está em outro lugar: a colônia é apenas uma extensão comercial e ainda teríamos marcas desta dependência.
            Na leitura de Fernando Novais, o “sentido da colonização” deve ser explicado por cada situação concreta, levando em conta as individualidades de cada momento histórico, ou seja, sua gênese, seu desenvolvimento e sua decadência. Apesar de o passado colonial fazer-se presente no Brasil contemporâneo, não devemos buscar uma causalidade fatalista, mas observar a especificidade de cada situação.       
Apesar de alguns autores, como Nilo Odália, encontrarem mais oposição que complementaridade entre as abordagens de Caio Prado Jr. e Fernando Novais, podemos afirmar que ambos, contribuíram para uma melhor compreensão da complexa formação da história economia brasileira. Nesse sentido, as oposições complementam-se na abertura de novos caminhos interpretativos. 

Referencias bibliográficas


NOVAIS, Fernando A. (1974). “Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial”. In: Cadernos Cebrap. São Paulo.
___________ (1998). “Condições da privacidade na colônia”. In: História da vida privada no Brasil. Vol. 1. São Paulo, Cia das Letras.
ODÁLIA, Nilo (1974). “Sentido de colonização, modo de produção e história colonial”. In: Debate e Crítica, n. 4. Revista quadrimestral de Ciências Sociais, novembro de 1974.  
PRADO Jr., Caio (1981). Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo. Brasiliense.

* José Edilson Teles, graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).