Por José
Edilson Teles*
A
população brasileira percebe a existência do racismo, falta o passo seguinte
que é reconhecer a necessidade de combatê-lo.
Sérgio
COSTA, Dois atlânticos, 2006, p.
218.
Prólogo: sobre
despir-se dos privilégios
É impossível assistir o documentário Eu não sou seu negro (2016), de Raoul
Peck, e não experimentar um conjunto de sensações incômodas, uma espécie de vergonha
(alheia) pela condição humana. Baseado no livro inacabado do escritor
afro-americano James Baldwin – cuja narrativa entrelaça as trajetórias de
Martin Luther King Jr. e Malcon-X, figuras emblemáticas na luta contra o
racismo nos Estados Unidos –, o documentário atinge seu objetivo ao provocar o
público a pensar acerca do problema em torno das relações raciais. A estratégia
narrativa, construída pela combinação de imagens e trilha sonora (interrompida
às vezes por um breve silêncio proposital, talvez para suscitar a reflexão),
produz uma sensação de deslocamento que nos permite repensar uma série de
situações consideradas “naturais”, imperceptíveis inclusive pelas próprias
vítimas do racismo.
Ao assisti-lo, é impossível não se
perguntar pelos modos de reprodução de atitudes racistas, mesmo por parte
daqueles que se julgam isentos de responsabilidade. A fim de problematizar as
questões levantadas pelo documentário de Peck, o presente ensaio tem como
objetivo contribuir para o debate que trata do combate ao racismo,
especialmente no contexto das relações raciais no Brasil, realidade que nos
toca diretamente. Nesse sentido, tentarei articular dois problemas históricos
que nos permitem situar os ecos do racismo no século XXI: em primeiro lugar,
farei uma breve incursão pelas origens do conceito de “raça” e suas implicações
políticas e sociais na construção do imaginário de identidade nacional; no
segundo momento tratarei de demostrar que o combate ao racismo depende de uma
postura engajada politicamente, cuja crítica consiste identificar o racismo como
um problema sistêmico e estrutural – e não apenas de indivíduos. Assim, teremos
condições de perceber que não basta não
ser racista, misógino ou homofóbico: é preciso engajar-se numa luta,
começando por reconhecer alguns privilégios.
Mapeando um debate: o
conceito de “raça” e o racismo científico
A construção do conceito de “raça” e
suas implicações para as relações raciais no Brasil podem ser situadas
historicamente. Os intelectuais brasileiros que trataram da ideia de identidade nacional, entre os séculos
XIX e XX, tiveram que se debruçar sobre o “problema” da miscigenação a fim de propor uma solução por meio de um projeto
político de “saúde” nacional, uma espécie de projeto higienizador. Em Dois atlânticos (2006), Sérgio Costa
procura situar os fundamentos epistemológicos desse projeto a partir do conceito de “raça” que, tomada em seu sentido
biológico, constituiria o chamado “racismo científico”. Conforme Costa,
“buscava-se no reino natural as explicações para as diferentes hierarquias
sociais” (p. 206). Logo, legislando em causa própria, não seria difícil para os
europeus dizerem quem estaria no topo
da hierarquia.
De modo específico, na década de 1930, o
racismo científico brasileiro procurava importar ideias europeias acerca das
determinações biológicas sobre as capacidades pessoais e raciais. Entretanto, o
fenômeno da miscigenação, tida como a principal característica da formação da
sociedade brasileira, apresentava uma experiência diferente da situação
europeia, fato que exigia uma adaptação da teoria racista. Pressupondo a
superioridade da raça branca sobre as demais, essa teoria racista tornou-se a base
para a construção de um projeto de nação.
Segundo Costa, ao menos duas correntes
divergiam no interior do racismo científico quanto aos “riscos da miscigenação”
(p. 166). Por um lado, os mais “pessimistas” defendiam a tese de que a mistura
das raças levaria ao “perigo” da degeneração
e à impossibilidade da constituição de um projeto de nação civilizada – ou
“curada”. Nina Rodrigues, por exemplo, consta entre os intelectuais dessa
corrente e, conforme Wagner Gonçalves da Silva, seus estudos sobre as práticas
religiosas do candomblé, “serviam para demonstrar a incapacidade mental dos
negros africanos para as elevadas abstrações do monoteísmo” (1991, p. 51). A
segunda corrente, representada por uma ala mais “otimista” (mas não menos
problemática), sustentava a ideia de que o próprio fenômeno de miscigenação se
encarregaria, por meio de uma seleção natural, do processo de “branqueamento”
do Brasil, isto é, do desaparecimento progressivo dos negros e mestiços. Essas
teorias racistas perderam progressivamente seu lugar nas explicações
sociológicas, embora os ecos de seus pressupostos permaneçam presentes nos
substratos da formação do imaginário nacional brasileiro. É isso que chamamos
de racismo sistêmico e estrutural,
visto que se expressam nas instituições e nas relações sociais.
Raízes do Brasil: sobre
o racismo sistêmico e estrutural
As explicações biológicas para o
fenômeno da miscigenação deram lugar a explicações sociológicas. Entre os
autores que enfrentaram os desafios de produzir uma nova interpretação das
relações sociais no Brasil, destacam-se Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda e Oracy Nogueira. A seu modo, cada um procurou contribuir para o debate
em torno da ideia de “identidade nacional” que permite, nas estrelinhas,
identificar as peculiaridades da formação brasileira e a estruturação das
relações raciais.
Em Casa-grande
& Senzala, G. Freyre (2006), dedica-se a descrever a formação da
família brasileira a partir dos traços da economia patriarcal. De modo
específico, Freyre propõe-se a tratar dos “problemas brasileiros” a partir de
um eixo de relações estabelecidas pelo fenômeno da miscigenação (p. 31), que
segundo Freyre, corrigia a “distancia social” entre a “casa-grande e a senzala”
(p. 33). Em decorrência desse posicionamento, Freyre insistia no argumento de
que a miscigenação, ao contrário do modelo de segregação – tal como se verifica
na experiência norte-americana tratada no documentário Eu não sou seu negro –, produzia uma espécie de “harmonia” das
raças, servindo, portanto, como uma espécie de “laboratório” para compreender
as relações raciais em outros contextos. Além disso, no que diz respeito às
“etiquetas” que constituem as relações sociais no Brasil, Freyre argumenta que
“a história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro”
(p. 44), um elemento cultural por meio do qual se exprime “o caráter
brasileiro” (p. 45).
Nesse sentido, é compreensível, embora
não justificável, o argumento de Freyre segundo a qual o fenômeno da
miscigenação teria “adocicado” as relações entre senhores e escravos, entre a
casa-grande e a senzala. Entretanto, a narrativa mítica da “harmonia das raças”
produziu uma modalidade difusa de denegação do preconceito racial (a famosa
frase “não sou racista, mas...”) em detrimento das práticas cotidianas que
insistiam em exprimir o contrário. Nesse sentido, a família constitui-se em um
dos principais elementos “ponderadores” das relações sociais no Brasil: o
encontro sexual “híbrido” soma-se ao oligarquismo político (mandonismo) e ao
patriarcalismo econômico (agrário) na constituição de “harmonia racial”.
Portanto, o argumento central de Freyre é que “a formação brasileira te sido um
processo de equilíbrio de antagonismos” (p. 116).
Assim como Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, em Raízes do Brasil (1995),
também destaca o fato de que os portugueses não nutriam orgulho de raça,
elemento que os colocavam em vantagens em relação ao “separatismo” político e
religioso que marcavam as mentalidades de outros colonizadores europeus.
Entretanto, apesar da “frouxidão da estrutura social” que impossibilitava uma
“hierarquia organizada” (p. 33), isso não significa que lógicas hierárquicas
estivessem ausentes do conjunto de relações sociais estabelecidas na colônia.
Pelo contrário, os “elementos anárquicos” que se constituíram com a
cumplicidade das instituições fundavam-se, segundo Holanda, em “privilégios”
(p. 35). Ditos de outro modo, as relações sociais estabelecidas no Brasil,
desde sua formação, não encontraram bases na clássica distinção ibérica entre o
público e privado.
Como podemos observar, análise de
Holanda consiste em contrastar a mentalidade ibérica, tida como tipo ideal da racionalização e a peculiaridade da
constituição da mentalidade luso-brasileira, marcada pelas relações personalistas. Segundo Holanda, o
“peculiar da vida brasileira” seria acentuado de modo “enérgico” pelas
características afetivas, irracionais e passionais, em oposição às qualidades correspondentes a ordem, a disciplina e a razão (p.
61). Esses pares binários também aparecem nos contrastes entre o “semeador” e o
“ladrilhador”, o primeiro representando a ausência de uma lógica comercial e o
segundo expressando a lógica do cálculo e as estratégias de organização.
Quanto a Oracy Nogueira, suas análises
sobre o preconceito racial de marca
no Brasil em contraste com o preconceito racial de origem no contexto norte-americano, permitem-nos visualizar as
complexidades das relações sociais na sociedade brasileira. Em Tanto preto quanto branco (1985 [1954]),
Nogueira problematiza as temáticas clássicas que tratam das relações raciais e
propõe uma nova perspectiva no tratamento da questão. Nesse caso, a experiência
americana serve como uma espécie de “espelho” para compreensão da situação
brasileira.
No caso do Brasil, a configuração da
gramática do preconceito de marca ou de cor ganha contornos sofisticados no
cotidiano ao reproduzir (conscientemente ou não) estigmas associados às
características fenotípicas. Nesse sentido, Nogueira ainda chama atenção para o
fato de que o problema das relações sociais no Brasil é, antes de tudo, o
preconceito de marca, segundo a qual “o negro ou a pessoa escura sempre luta
com desvantagem” (p. 79). Conforme Nogueira, o fenômeno da miscigenação e sua
interpretação produziram uma espécie de “mito” capaz de conformar a ideia de
harmonia racial. Por vezes, a diferenciação no trato dispensado no cotidiano às
pessoas de cor, processa-se de modo a mascarar as práticas. A sofisticação é
tal que mesmo a vítima do preconceito racial, em algumas circunstâncias, não se
dá conta do aspecto velado da situação. Além disso, o problema também se
estende para as esferas institucionais que “filtram” de modo sofisticado, por
uma variedade de estratégias, os indivíduos que possuam algum tipo de
característica “indesejada”.
Epílogo: por um projeto
anti-racista interseccional
Esse breve ensaio, inspirado no
documentário Não sou seu negro,
procurou apresentar as sutilezas do racismo estrutural no contexto das relações
raciais no Brasil. Assim, ao longo da formação da sociedade brasileira, e em
pleno o século XXI, é possível encontrar ecos das explicações pretensamente
“científicas” dos séculos XIX e XX presentes no imaginário da identidade
nacional, consolidada na versão do mito das “três raças” harmônicas. Além
disso, o racismo estrutural conta com um poderoso instrumento de reprodução
ideológica, a saber, o sistema educacional, tornando possível a construção do
que Benedict Anderson chamou de “profunda camaradagem horizontal” (2008 p. 34)
entre aqueles que partilham dos valores considerados essenciais para o
coletivo.
Nesse sentido, o debate contemporâneo
chama atenção para o fato de que as estratégias anti-racistas precisam
articular a questão da raça, classe e gênero como um projeto de luta
interseccional. Uma vez que o racismo estrutural dispõe de uma linguagem global
(porque foi construída para ser “naturalizada”), como é o caso dos defensores
da supremacia branca, é preciso que suas implicações sejam pensadas em
múltiplas escalas. Um projeto anti-racista precisa dar-se conta dos
diferentes tipos de opressão e combatê-los em conjunto (se possível, com
tecnologias análogas). Do ponto de vista da ação política, isso implicaria a
necessidade de atuação por meio de política de ação afirmativa, por meio de
mecanismos eficientes de criminalização do racismo e por meio da norma
universal de oportunidade. Por fim, se o racismo é uma realidade incontestável,
estrutural e institucionalizado, é preciso criar a necessidade de combatê-lo,
pois, como diria Audre Lorde, “não há hierarquias de opressão” (2009). E os que
desejam combatê-lo de modo eficaz, apesar dos resultados não serem imediatos,
não basta afirmarem que não são racistas, é precisam começar por despirem-se seus
privilégios.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON,
Benedict. Comunidades imaginadas. São
Paulo: Cia das Letras: 2008.
COSTA,
Sérgio. Dois atlânticos: Teoria social,
anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG/Humanitas, 2006.
FREYRE,
Gilberto. Casa-grande & Senzala: a
formação da família sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global,
2006.
HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.
São Paulo: Cia das Letras, 1995.
LORDE,
Audre. “Não há hierarquias de opressão”. In: Textos escolhidos, 2009.
NOGUEIRA,
Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos
de relações raciais. São Paulo. T.A Queiroz, 1985 [1954].
SILVA,
Vagner Gonçalves da. “A crítica antropológica pós-moderna e a construção textual
da etnografia religiosa afro brasileira”. In. Cadernos de Campo, Ano 1, N. 1, 1991.
*José Edilson Teles, é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).