Por José Edílson Teles *
Prólogo: apresentando as
perspectivas de um problema
Esse breve ensaio procura situar o
debate contemporâneo em torno do conceito de “cultura popular” em África,
tomando como ponto de partida as contribuições de Jahannes Fabian (1978) e Ulf
Hannerz (1987). Os exemplos etnográficos de Fabian situam-se no Zaire e os de
Hannerz situam-se na Nigéria. Ambos problematizam o enquadramento analítico
clássico dispensado ao colonialismo em África e propõem, cada um seu modo,
novos modos de ler esse processo. O investimento etnográfico de ambos tem como
objetivo demonstrar que as práticas urbanas, tais como os modos de
sociabilidades, a música, o lazer, o esporte, a moda, etc., sejam vistas como
expressões da cultura popular. Esses
novos olhares sobre os fenômenos urbanos em África tem a vantagem de romper com
os dualismos rígidos que insistem na distinção entre o “autêntico” e o
“inautêntico”, o “puro” e o “impuro”.
A fim de levar a diante as contribuições
das abordagens de Fabian e Hannerz, procuro articular dois artigos que tratam
da expressão da cultura popular em diferentes contextos africanos: o primeiro é
o caso da colonização portuguesa em Moçambique e sua relação com a
popularização do futebol, tratado por Nuno Domingos em Desporto moderno e situações coloniais (2010); o segundo artigo, Nem todas as batalhas eram flores
(2013), de Andrea Marzano, trata dos modos de sociabilidade e os conflitos
sociais em Luanda, capital de Angola. Ambos os artigos nos permitem situar as
novas leituras do processo de colonização e urbanização em África, tal como
propõe Fabian, ou do processo de “criolização”, como prefere Hennerz. Vejamos,
em síntese, o desdobramento desse debate.
Ato I: para não
desentender um debate – novos olhares sobre a cultura popular africana
A literatura antropológica
contemporânea que trata dos fenômenos urbanos em contextos africanos apresenta
um conjunto de desafios aos conceitos analíticos clássicos, sobretudo, quando
se trata das implicações do colonialismo e da potencialidade de agencia dos
grupos dominados. Essa literatura procura demonstrar, por meio de novas
abordagens, a ineficácia dos conceitos binários rígidos, tais como “dominação”
x “exploração”, para dar conta de uma série de fenômenos sociais em processos
de mudanças. Além disso, como desafio, argumenta-se a necessidade de tratar
dessas questões sem os riscos da essencialização ou exotização da alteridade cultural.
Antes de avançarmos nos desafios
analíticos dessa proposta, é preciso lembrar que as monografias clássicas sobre
África situavam-se em outros contextos e planos analíticos. E.E.
Evans-Pritchard, por exemplo, ao empreender a pesquisa encomendada pelo governo
colonial sudanês sobre Os Nuer (2008
[1940]), toma-os como uma unidade tribal. Seu objetivo era descrever e analisar
os modos de subsistência e as instituições políticas de um povo que vivia nas
proximidades do rio Nilo, no sul do Sudão, e que haviam promovido uma série de
insurgências contra o governo colonial anglo-egípcio. O fato de não haver, nos
termos ocidentais, uma organização política como o Estado, faz com que
Evans-Pritchard suponha tratar-se de uma sociedade sem “governo”, uma “anarquia
ordenada”. Seu esforço era demonstrar que, apesar dessa aparente “anarquia”, a
estrutura social nuer era organizada por meio de uma série de segmentos tribais, territoriais e de aldeias.
Para descrever os mecanismos que permitiam a organização de um “princípio
estrutural” nuer, Evans-Pritchard recorreu à noção de “sistema político”,
reconhecendo os limites de tal terminologia.
O caso dos Nuer continua ilustrativo
para essa questão. Beatriz Perrone-Moisés (2001) apresenta um quadro
contemporâneo das relações deste povo com os Dinka, vizinhos com os quais
travavam conflitos antigos, conforme a descrição de Evans-Pritchard.
Entretanto, Perrone-Moisés coloca questões nas quais esses dois povos não são
mais tratados como unidades tribais isoladas, tal como nas descrições de
Evans-Pritchard, mas como parte de um novo contexto de independência do Sudão.
Nesse sentido, a ideia de “tribo” como uma unidade de análise passa a não fazer
sentido na descrição desse novo contexto social em África.
A fim de colocar a questão em outros
termos, Jahannes Fabian (1978), Karin Barber (1987), Ulf Hannerz (1987) e
Frederick Cooper (1987), propõem, para além dos conceitos binários rígidos
mencionados, que se atente para as dinâmicas dos fenômenos urbanos. De modo
geral, a fim de abandonar as análises de “unidades” isoladas, esses autores
estão preocupados em propor uma reflexão sobre o fenômeno da “cultura popular”,
investindo na produção do que poderíamos chamar de “antropologia do cotidiano”.
Apesar das ambiguidades em torno do
conceito de “cultura popular”, essa ideia tem a vantagem de apreender um
conjunto de relações não institucionalizadas ou pensadas nos termos de um poder
colonial ou nacional. Conforme o argumento de Fabian, seu uso pode ser
justificado pelas seguintes condições:
“(a) sugere
expressões culturais contemporâneas realizadas pelas massas em contraste com
ambos os modernos cultura ‘tribal’ elitista e tradicional; (b) evoca condições
históricas caracterizadas por comunicação em massa, produção em massa e
participação em massa; (c) implica, em meu entendimento, um desafio às crenças
aceitas na superioridade do ‘puro’ ou ‘alta’ cultura, mas também para a noção
de folclore, uma categorização que temos suspeitado de ser igualmente elitista
e ligado a certas condições na sociedade ocidental; d) significa, pelo menos
potencialmente, processos que ocorrem por trás das bases estabelecidas dos
poderes e interpretações aceitas e, assim, oferece uma melhor abordagem
conceitual a descolonização da qual é, sem dúvida, um elemento importante” (1978, p. 315, tradução minha).
É importante notar que o conceito de
“cultura popular”, tal como formulado por Fabian, procura dar conta de um
“complexo de expressões de experiência de vida” (p. 315), entre os quais, a
produção musical e as práticas desportivas que constituem formas de lazer das
massas urbanas e elementos importantes para pensar o processo de descolonização.
Seguindo as pistas que o conceito de cultura
popular permite conduzir, Fabian propõe-se a comparar três mídias populares
no Zaire: a) as temáticas da música
popular, especialmente as que tratam das relações homem-mulher; b) as
implicações da religião Jamaa na vida
dos convertidos (e suas relações com a tradição local); c) as figuras das
sereias (mamba muntu) das pinturas de
artistas populares.
Cada uma dessas dimensões tem seus agentes
e são produzidas em diferentes contextos: a sociabilidade nos bares por meio da
música; no caso da religião, as implicações para a vida dos casais, cujas
obrigações exigem o rompimento com a tradição; no caso da pintura, os
estabelecimentos comerciais. Portanto, a proposta de tomar esses elementos como
uma expressão da cultura popular
permite a essa abordagem pensar o espaço das contradições, superando o dualismo
entre o que é considerado “autêntico” e “inautêntico”. Cada um, a seu modo,
expressam diferentes “experiências da vida”, como diria Fabian.
Na abordagem de Ulf Hannerz (1987) a
questão da cultura popular ganha dimensões ainda mais amplas. Tomando como
ponto de partida o contexto nigeriano, Hannerz problematiza conceitos
teleológicos, tais como “aculturação” e “modernização”, que tendem a não perceber
as múltiplas dimensões das relações de poder em disputa. Hannerz propõe uma
teoria linguística da “criolização” para narrar um processo de mudanças
linguísticas em um novo contexto. Como ele mesmo diz: “como eu mesmo vejo, culturas crioulas como
línguas crioulas são aquelas que atraem de alguma forma em duas ou mais fontes
históricas, muitas vezes originalmente muito diferentes” (1987, p. 552, tradução minha). Nesse sentido, a
questão da “apropriação” de elementos culturais externos não aparece na chave da
“alienação”, mas numa relação “periferia-centro” (p. 556), sem que se presumam
as oposições entre o “autêntico” x “inautêntico”. Em sua positividade, essas
apropriações se transformam, se “criolizam” e ganham novos status.
Nos casos tratados por Fabian (no Zaire)
e por Hannerz (na Nigéria) temos a emergência da cultura popular como um
fenômeno eminentemente urbano, decorrente de um longo processo de colonização e
mudanças locais. Entre esses fenômenos urbanos, as formas de sociabilidades e
lazer, bem como as práticas desportivas, teriam a vantagem de apresentar outras
facetas do colonialismo, para além da moldura tradicional. Nessa direção, Phyllis
Martin (1997) – a partir de uma controvérsia em torno do futebol em
Brazzaville, em 1936, na qual se discutiam a pertinência de uma lei que proibia
uso de chuteiras por parte dos jogadores negros – apresenta as dificuldades
poder colonial em lidar com regulação dos corpos. Assim, por essas “frestas” do
poder, Martin sugere que o colonialismo seja visto como um modo de “percepção”
que inculca em todos os envolvidos, dominados e dominantes, um modo viver.
Vejamos, a seguir, como dois casos – um
sobre futebol e outro sobre lazer – nos permite compreender as
dinâmicas da cultura popular urbana.
Ato II: articulando situações:
práticas desportivas, sociabilidades e conflitos sociais
Em Desporto moderno e situações coloniais (2010), Nuno Domingos trata
de contextualizar o caso do futebol em Lourenço Marques, colônia portuguesa em
Moçambique. Segundo Domingos, a história do desporto permitiria compreender as
várias estruturas do poder colonial. Seu argumento é que as práticas de lazer
revelariam não apenas as estruturas hegemônicas de poder, mas também as
condições de existência do mundo dos dominados, permitindo salientar suas
potencialidades enquanto universos de recriações e invenções.
Não bastaria, portanto, voltar-se para os
aspectos institucionais do colonialismo, como a escola, o exército, as missões
religiosas e as empresas capitalistas; seria preciso reconhecer os diferentes
modos de agenciamento colocados em circulação pela dinâmica das práticas, a fim
de obter novas perspectivas de uma “imagem do processo colonial”.
Em primeiro lugar, as práticas
desportivas expressavam a estratificação social imposta pelo colonialismo.
Trata-se, segundo Domingos, de um fenômeno que tem suas raízes no processo de
urbanização. Esse sistema de dominação implicava numa divisão que distinguia os
chamados “civilizados” e os “indígenas”, categoria composta por grande parte da
população. De modo sutil, os “assimilados” – que mais tarde seriam reconhecidos
como uma “elite crioula” – apareciam como uma terceira categorização para
designar aqueles que provavam estarem em condições de viver de acordo com o
estilo de vida europeu. Assim, inscrito na cultura popular e urbana, o
desenvolvimento do desporto trouxe consigo não apenas novos estilos de vida
para os diferentes grupos, como também expressava o racismo de modo intenso e
visível.
Do ponto de vista institucional, o
colonialismo português contava com modelos de associativismo que favoreceram o
desenvolvimento das redes de associações e clubes, bem como o estabelecimento
de competições organizadas. A partir daí, as práticas desportivas,
especialmente o futebol, se revelavam como elementos cruciais do lazer das
populações no espaço urbano. Phyllis Martin ainda nos lembra de que esse
processo de urbanização em África introduz uma lógica da produção capitalista e
lazer, baseada em uma noção de tempo totalmente nova para o contexto africano. Logo,
a difusão de uma cultura urbana também expressava as contradições da
estratificação social.
Se por um lado as práticas desportivas
eram vistas pelas elites como um mecanismo da “civilização” da juventude
africana, por outro, o universo de recriação e invenção por parte destes
subvertiam essa lógica. A popularização do futebol nos subúrbios, como símbolo
do moderno, desenvolveu-se paralelo às práticas tradicionais locais. Domingos
menciona, por exemplo, o desenvolvimento de uma “indústria da feitiçaria”,
cujas práticas produziam especialistas responsáveis por auxiliarem nos
resultados dos jogos. A necessidade de vitória e o prestígio dos jogares
originou uma especialização “futebolística” da prática do feiticeiro. Por fim,
conclui Domingos, que o desposto constitui-se em um “espaço de oportunidades,
de expressões conscientes ou inconscientes de lutas” (2010, p. 239) num
contexto de dominação colonial violenta.
Modos de sociabilidades e conflitos
convivem nos variados espaços urbanos. O artigo de Andrea Marzano, Nem todas as batalhas eram flores
(2013), corrobora essa questão. Seu objetivo é analisar o contexto dos
conflitos sociais em Luanda entre os séculos XIX e as três primeiras décadas do
século XX. Tomando como eixo as
formas de sociabilidades no cotidiano, Marzano procura demonstrar as tensões
entre diferentes grupos, intensificadas especialmente pela presença da
colonização.
A fim de construir a situação dos grupos
de conflito, Marzano propõe três categorias sociais: os “colonos”, considerados
como situados no topo da hierarquia social, seriam identificados como
portugueses recém-chegados e seus descendentes; os “angolenses” ou “filhos da
terra” aparecem como uma autodesignação dos negros e mestiços que dominam
alguns códigos culturais europeus e a língua. Assim como no caso de Lourenço
Marques, tratado por Domingos, temos aqui também a presença de uma elite
“crioula”. Por sua, o terceiro grupo seriam os “gentios”, categoria que até o
século XIX designava os africanos que não dominavam os códigos culturais
europeus. Mais tarde, a designação desse grupo como “indígena” teria se tornado
predominante.
O ponto forte do artigo de Marzano é
demonstrar que essas relações de tensões são construídas ao longo de séculos da
presença da colonização. A cidade de Luanda representou um importante polo para
o comércio de escravos, fato que intensificou a circulação de pessoas e a
flagrante desigualdade entre os grupos supramencionados. Assim, os modos de
lazer também manifestam as ambiguidades e conflitos sociais: as danças
culturais híbridas, os hotéis como símbolos da relação com a metrópole, as
bebidas e os jogos de azar, os festivais de flores na cidade, apontavam para
diferentes níveis de distinção e hierarquização.
Marzano argumenta que as “formas de
sociabilidade características do modo de vida europeu” representava uma
“oportunidade para os colonos demarcarem suas diferenças em relação aos negros
e mestiços nascidos em Angola” (2013, p. 22). Em suma, segundo Marzano, os
espaços de lazer, especialmente o esporte, continuavam a manifestar tensões
entre diferentes grupos, lembrando que “nem todas as batalhas eram flores” (p.
34).
Epílogo: os rendimentos
do conceito de cultura popular
A síntese do debate que procurei
reconstituir tinha como objetivo apontar os rendimentos analíticos do conceito
de “cultura popular”. Essa abordagem tem a vantagem de contar com os exemplos
etnográficos a seu favor e permite apresentar nuances do colonialismo que as
análises macro e institucionais não dão conta de apreender.
Pode-se ainda argumentar que tomar
os fenômenos urbanos como diferentes expressões das “experiências de vida”,
como diria Fabian, permite ainda superar as análises que supõem o status de pureza dos elementos culturais.
Submetido a constante transformação, a cultura popular africana exige novos
olhares ou novas perspectivas analíticas. Como vimos, apesar dos limites que se
impõe a qualquer modelo analítico, a principal contribuição dessa antropologia
do cotidiano é problematizar a essencialização ou a exotização da cultura
africana. O caso do futebol e dos modos de lazer, certamente nos permitiram
olhar pelas frestas do poder colonial e perceber outros aspectos da vida
social, sem que nos decepcionássemos com as projeções ocidentais de uma “África
profunda” ou de uma “África exótica”.
REFERENCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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PERRONE-MOISÉS,
Beatriz. “Conflitos recentes, estruturas persistentes: notícias do Sudão”. In. Revista de Antropologia, São Paulo, USP,
n. 2, v. 44, 2001.
* José Edílson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP). Este ensaio foi desenvolvido
como proposta de trabalho final para disciplina “Cultura Popular Africana”,
ministrado pelos professores Wilson Trajano Filho e Laura Moutinho, no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia (USP), no primeiro semestre de 2018. De modo
especial, agradeço aos professores pelas contribuições.