Por José Edilson Teles*
Immanuel Kant
(1724-1804), filósofo alemão cujo pensamento contribuiu para o desenvolvimento
da filosofia Iluminista no século XVIII, é considerado o demolidor das
estruturas dogmáticas da tradição cristã ao relegar a transcendência à esfera
da experiência. Talvez, nenhum outro pensador influenciou tão profundamente os
rumos da filosofia e da teologia nos séculos XIX e XX. Tudo que se produziu de
filosofia e teologia depois de Kant não poderia desconsiderar o impacto das
consequências de seu sistema. De certo modo, ainda é difícil escapar das amarras
conceituais de seu sistema filosófico, especialmente no Ocidente. O que
pretendo fazer neste ensaio é elaborar breves apontamentos acerca de algumas implicações
que o sistema kantiano exerceu sobre um modo de fazer teologia. Como se
sustenta o tipo de saber reivindicado pela teologia?
O primeiro problema
(não necessariamente o primeiro de uma série) é a questão do conhecimento. O que somos capazes de
conhecer? A filosofia kantiana procurava sistematizar e combinar elementos de
duas grandes correntes filosóficas até então incompatíveis e irreconciliáveis
acerca dessa questão: por um lado o idealismo cartesiano que
atribuía à nossa capacidade de conhecer certo inatismo e da qual os teólogos mais se identificavam; e por outro,
o empirismo inglês desenvolvido por Francis Bacon (1561-1626),
John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), que defendiam a precedência
da experiência na constituição do conhecimento.
De certa forma, há
uma superação nesta combinação ou mais acertadamente, Kant uniu ambas correntes
num centro, criando um novo sistema. Concordava com os
empiristas ao dizer que todo nosso conhecimento do mundo exterior chega a nós
através dos sentidos. Por outro lado, sustentava como os idealistas, que a
própria mente contribui para nosso conhecimento da realidade. Entretanto,
deve-se notar que para Kant, não é possível conhecer a realidade em si mesma ou
sua essência, levando-o a construir
um “limite para a razão”.[1]
Qual a implicação dessa
questão para a teologia? O sistema kantiano implicava numa rejeição a todo
conhecimento metafísico, comum principalmente entre os idealistas ou aprioristas.
Kant, por exemplo, destrona as pretensões da teologia cristã ao demonstrar
as contradições e os limites da mente humana na reivindicação de um
conhecimento ontológico, isto é, não
é possível a razão humana estabelecer um conhecimento do Ser em si ou sua essência.
Seguindo Hume, Kant criticava a filosofia metafísica (e a teologia) que
acreditava estabelecer por meio de categorias do pensamento humano (tempo,
espaço, substância) ideias religiosas de Deus,
como liberdade e imortalidade. Este procedimento lhe parecia impossível, visto que a
razão humana era finita, não podendo, portanto, alcançar o infinito.
Sendo assim, as
categorias do pensamento humano seriam válidas apenas para compreensão das
coisas finitas, apenas para descrever nossas relações com o mundo. A proposta
de transcender o finito tornava-se problemática para os metafísicos, logo também
aos teólogos. A partir daí, não seria mais possível conceituar “Deus” como na
teologia tradicional, muito menos pela apropriação das categorias filosóficas
metafísicas.
De acordo com o
sistema kantiano, a nossa racionalidade organiza a forma de conhecer por meio
de dois processos: por um lado temos a capacidade de desenvolver pensamentos
lógicos e abstratos chamado por Kant de razão
pura. Este campo de conhecimento está sujeito à verificação, a
experimentação e a comprovação. Por outro, parte da nossa racionalidade
processa um tipo de conhecimento prático,
chamado de razão prática, onde seria
concebido, por exemplo, a moral, a religião, o sentimento.
A consequência
imediata, é que não se pode mais pensar em “Deus” em termos de causa ou
substancia (inata) universal. Desse modo, a religião, até então tida como
um elemento sobrenatural ou transcendente reduz-se à esfera da experiência,
submetida a uma lei moral, logo natural.
Sendo assim, para
Kant pensar é diferente de conhecer, cuja fonte
está na experiência. De acordo com Kant, só podemos conhecer os
fenômenos e não a coisa em si. Por exemplo: só podemos conhecer a ideia de
liberdade, mas não a liberdade, visto que ela é abstrata. No caso da religião,
só podemos concebê-la pela moral e não em sua essência,
isto é, o finito não pode apreender Deus por suas categorias. Conhecemos apenas
uma ideia de Deus cuja manifestação se daria na experiência,
numa lei universal chamada “moral”.
A categoria de causalidade,
por exemplo, descreve a inter-relação entre experiências finitas. O tempo é a principal forma finita de
transitoriedade, incapaz de ser fixado num momento. Se o fixamos, ele deixa de
existir. Para Kant, estas categorias só podem ser utilizadas no domínio dos
fenômenos, que são as coisas aparecendo no tempo e no espaço. É por isso que os
conceitos de Deus, liberdade e imortalidade não podem ser empregados nessa estrutura racional, mas
deve ser relegada à estrutura “prática”, das experiências. Embora esses
conceitos não fossem demonstráveis, davam coerência ao pensamento e
comportamento éticos.
Friedrich Schleiermacher: sobre a reação romântica.
O teólogo e filósofo
alemão Paul Tillich (1886-1965) pode ser listado entre os pensadores que
reconhecia a crítica de Kant como “válida”, embora também afirmasse que ela não
atingisse o princípio do problema.[2] E isso não seria possível pelo seguinte motivo: Kant pressupunha a
separação entre finito e infinito, base na qual a teologia ontológica
se sustentava. O sistema kantiano constituía-se, conforme a descrição de Tillich,
num “princípio de distanciamento”[3] entre sujeito e objeto, isto é, um abismo instransponível entre o finito (natureza, homem) e o infinito (Deus, espírito). Esta
separação suscitou a reação de alguns teólogos, como por exemplo, Friedrich
Schleiermacher (1768-1834), considerado pai da teologia moderna, ao reformular
a noção de religião como “sentimento de dependência absoluta” percebida pela
intuição.[4]
Para finalizar, ainda
é preciso considerar o fato de que Kant não configura o que atualmente se concebe como
“ateu”, se é que esta categoria é isenta de ambiguidade; pelo contrário, era de
tradição protestante, além de um exímio filósofo da religião. A ideia
de ateísmo tal como concebemos, não estava presente nos
filósofos dos séculos XVI à XVII, nem mesmo, nos mais implacáveis críticos da
religião. Sem dúvida, os valores de sua época foram moldados por
questões religiosas, tornando-se, portanto, o centro de suas preocupações.
Certamente, denunciaram o que classificaram como “superstições”, “mitos”
ou “dogmas” e resistiram submeter-se ao monopólio institucional da religião. Apesar
disso, nutriam expectativas positivas por uma ideia de religião natural ou religião
moral, regidas por uma razão em busca da “verdade”.
A noção de ateu, por sua vez, foi construída
num novo contexto, onde o desenvolvimento científico construiria uma nova “imagem
do mundo”, colocando em cheque, inclusive os modelos da própria filosofia. Ainda
assim, a noção de ateu não me parece
tão “pura” como se pretende atribuir; aliás, como diriam os antropólogos,
nenhuma construção conceitual é “pura”. É sempre fruto de determinados contextos
histórico-culturais. Não era o caso de Kant, nem mesmo de muitos filósofos
iluministas.
Esse tipo de
anacronismo histórico é que nos afasta de uma compreensão dos séculos XVII e
XVIII, pois, insistimos em colocar sobre eles ou na “boca” deles nossos dilemas
conceituais e existenciais. Desse modo, nosso empreendimento para
compreender a teologia moderna, cujo precursor foi Schleiermacher, só será
possível, se estivermos dispostos a compreender os valores, os embates
filosóficos e suas implicações, bem como a dinâmica condicionada pelo seu
tempo. Caso contrário, nossas críticas não seriam descontextualizadas congelando-nos
pela inabilidade do diálogo?
* José Edilson Teles é graduado em Sociologia e Política (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social (USP).
Notas:
[1] C.f. KANT, Immanuel. A religião
nos limites da simples razão. São Paulo. Escala, S/ano. Coleção
grandes obras do pensamento universal.
[2] P.
TILLICH, “significado histórico da
filosofia existencial”, in: Teologia da Cultura. São Paulo, Fonte
Editorial, 2009, p. 129.
[3] TILLICH,
Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São
Paulo, ASTE, 1999, p. 118.
[4]
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião: discursos a seus
menosprezadores eruditos. São Paulo. Novo Século, 2000. Em reação à postura
iluminista, Schleiermacher questionava em tom irônico: “resolvam-me portanto,
interlocutores mui queridos, de onde haveis tirado estes conceitos de religião,
que constituem o objeto de vosso desprezo?” (p. 18). Em seguida estabelece sua
definição, afirmando que a essência
da religião não é “pensamento nem ação, senão intuição e sentimento” (p.
33).